Porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o SENHOR o dia do sábado, e o santificou.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Conheça a história das primeiras ferrovias brasileiras


As primeiras estradas de ferro do Brasil tiveram a participação dos engenheiros ingleses



De repente um grito prolongado, estridente, um sibilo de força de 50 sopranos estrugiu pelos ares e nos fez levar as mãos aos ouvidos. Era o aviso a quem estivesse à frente para acautelar-se do bote mortal, aviso dado por um tubo da própria locomotiva. Mais veloz do que uma flecha, do que o voo de uma andorinha, o carro embalançou-se, correu, voou, devorou o espaço e, atravessando campos, charnecas e mangues aterrados, parou então arquejante onde o caminho não oferece segurança."
Foi assim, com o olhar incrédulo e espantado, que o repórter do Jornal do Commercio registrou o primeiro passeio de trem no Brasil. Na tarde de 6 de setembro de 1853, uma pequena locomotiva, a Manchester, conduziu jornalistas e políticos por 2,8 km da Estrada de Ferro Mauá, ainda em construção. O autor via nascer o que por quase um século seria o meio de transporte mais importante do país.

Desde a Idade Média, a Europa testou inventos, puxados por animais, parecidos com os trens modernos, mas foi a partir do final do século 18, com a Revolução Industrial, que surgiu a primeira máquina a vapor. Em 1804, o inglês Richard Trevithick construiu uma locomotiva, que movia um trem por 15 km. Em 1830, foi inaugurada a primeira linha, ligando Liverpool e Manchester. Dez anos depois, a Inglaterra já contava com uma rede nacional, com 10 mil km, e tinha transportado 400 mil pessoas.
Enquanto isso, o império brasileiro tentava recuperar o tempo perdido. A extração do ouro em Minas Gerais entrara em decadência, enquanto crescia a exportação do café. Mas a produção das lavouras ainda era transportada em lombo de burro até o porto do Rio de Janeiro, então o principal do país. Em 1835, foi aprovada uma lei do regente Diogo Antonio Feijó autorizando o governo a conceder favores a quem se dispusesse a construir "um caminho de ferro ligando o Rio de Janeiro às províncias de São Paulo e Minas Gerais". A oferta atraiu vários aventureiros, mas foi com a entrada em cena do empresário Irineu Evangelista de Sousa, o futuro Barão de Mauá, que a ideia começou a sair do papel.
Souza já era então o homem mais rico do Brasil. Deu o impulso fundamental não apenas às ferrovias no país como iluminou o Rio de Janeiro com lampiões a gás e iniciou a exploração da Amazônia. No caso dos trens, em 1840, em visita à Inglaterra, conheceu fábricas de locomotivas e trilhos, trazendo os primeiros engenheiros, maquinistas e operadores de caldeira para cá. Sua ideia era uma linha ligando o Vale do Paraíba, um polo produtor de café, ao porto de Estrela, no extremo da Baía de Guanabara, ao pé da região serrana do Rio.
Traçado em mula
Para definir o traçado, o empresário fez o engenheiro inglês William Bagge, um dos especialistas que trouxera de Londres, percorrer no lombo de mula o precário caminho que ligava o porto, então um dos mais importantes do Brasil, a Minas Gerais. A intenção era escoar a produção de café do Vale do Paraíba substituindo a estrada de terra e passando por Petrópolis, Juiz de Fora e São João del Rey. Do porto de Estrela, seriam levados de vapor ao porto do Rio.
O empreendimento foi totalmente privado. Mauá levantou os fundos entre amigos, criando a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, da qual se nomeou presidente. Os sócios incluíam negociantes ingleses de destaque na corte, como Richard Carruthers, Alexander Donald MacGregor e Thomas Fulding, e também políticos importantes, como os senadores Pimenta Bueno e Teófilo Otoni.

Não foi um trabalho fácil. Desmoronamentos causados pelas chuvas atrasavam o trabalho e surtos de febre atingiam os operários. A inauguração oficial da E.F. Mauá, batizada assim pelo imperador, foi em 30 de abril de 1854, meses depois da viagem experimental. Dom Pedro II, a imperatriz Leopoldina, nobres e a maioria dos ministros viajaram de barco até o porto, onde tomaram o vagão imperial da locomotiva Baronesa (batizada em homenagem à esposa de Mauá, Maria Joaquina), viajando 14,5 km entre a Praia da Estrela e Fragoso, no estado do Rio de Janeiro. Em reconhecimento, após o passeio o imperador concedeu ao empresário o título de Barão de Mauá, nome da localidade onde se localizava o porto.
Trilhos do café
A estrada de Mauá teve importância política, mas o império estava mais interessado na ligação entre o Rio e São Paulo. Em 1855 começaram as obras da Estrada de Ferro Dom Pedro II, um trecho de 48 km do Rio até Queimados, hoje município da Baixada Fluminense. Mesmo que mais um trecho da Estrada de Ferro Mauá tenha sido concluído em 1856, até a localidade de Raiz da Serra, atual Inhomirim, a rota, esvaziada economicamente, jamais chegou a Minas, e seu trajeto foi incorporado pela Ferrovia Grão-Pará em 1883.
"O Mauá estava a fim de ir além do Vale do Paraíba e chegar ao sertão, mas o governo queria escoar a produção. Foi um momento curioso em que o capital privado queria integrar o país e o Estado pensava no lucro", diz Jorge Caldeira, autor de Mauá - Empresário do Império.
Logo depois, as ferrovias se espalharam. Em 8 de fevereiro de 1858 foi inaugurada a The Recife and São Francisco Railway Company, entre a capital de Pernambuco e a localidade de Vila do Cabo. No mesmo ano, era aberta a Estrada de Ferro Dom Pedro II, a primeira etapa da ligação entre Rio e São Paulo, concluída em 1883. A Bahia-São Francisco, a terceira, é de 1860. Em 1862, a São Paulo Railway, outro projeto de Mauá, desta vez com capitais ingleses, foi inaugurada, ligando Jundiaí ao porto de Santos para escoar a produção cafeeira.
Serra do Mar
A ferrovia paulista é lembrada pelos ingleses como uma maravilha da engenharia vitoriana. O desafio era encontrar um caminho nos 800 m de descida da Serra do Mar, trajeto então considerado impossível. Havia a exigência de não serem utilizados explosivos, que poderiam causar desmoronamentos. Mas uma dupla de ex- perientes engenheiros ingleses, James Brunlees e Daniel Makinson Fox, conseguiu a solução com uma série de pontes e túneis cavados à mão e uma descida em três fases. A ferrovia também marcou época com suas estações de arquitetura inglesa. Algumas, como a da Luz, em São Paulo, estão até hoje em atividade.
"Nessa primeira fase, que durou de 1860 a 1880, o objetivo era ligar as lavouras ao porto. Não havia um plano nacional e sim centenas de quilômetros desconectados", diz Carlos Cornejo, autor, junto com João Emilio Gerodetti, de Ferrovias do Brasil nos Cartões-Postais. "Só mais tarde, mais para o fim do século 19, as ferrovias começaram a integrar o país."
As obras provocaram uma invasão estrangeira, com engenheiros e técnicos ingleses, franceses, suíços e alemães. Ainda que a escravidão perdurasse, eles recusaram a mão de obra escrava, contratando operários ou trazendo-os de seus países - só na São Paulo Railway trabalharam 4 mil ingleses. Muitos trouxeram famílias e viraram imigrantes.

No Brasil, os estrangeiros enfrentavam a dureza da geografia e do clima. Na construção da primeira ferrovia de Recife, uma epidemia de cólera matou 30 mil pessoas, causando a interrupção dos trabalhos várias vezes. Para compensar, estavam entre os trabalhadores mais bem pagos do mundo. David Angus, que trabalhou na Recife and São Francisco Railway, narra que ganhava 400 libras por ano, quatro vezes mais do que um engenheiro na Inglaterra.
As máquinas eram produzidas na Inglaterra, trazidas de navio para o Brasil e montadas aqui. Para o país, foi um choque e uma novidade. Em Recife, os jornais anunciavam a excursão "em um cômodo banco da carruagem puxada por locomotiva possante, vendo pelas janelinhas canaviais e cajueiros, praias e coqueirais, mangues e colinas". O primeiro trem pernambucano fez tanto sucesso que chegou a disputar público com os espetáculos no teatro.
Nas regiões cafeeiras, no entanto, os trens eram chamados de "besouros barulhentos". O escritor Emílio Zaluar reclamou em Peregrinação pela Província de São Paulo que o novo meio de transporte, encurtando as viagens, não deixava aproveitar as paisagens. "O trem era visto como uma maravilha da ciência e teve muitos lugares, como no Centro-Oeste, onde a estrada chegou primeiro e a ocupação humana veio atrás", diz Cornejo. Em 1876, em viagem aos EUA, dom Pedro II manifestou em seu diário a paixão pelas ferrovias que havia ajudado a construir. "Examinei aqui as oficinas centrais desta estrada de ferro. São muito importantes, porém não tão bonitas como as da estrada de ferro do Rio".
im José, o Tiradentes

jose Joaquim! o tiradente Herói, idealista e líder que demonstrou caráter ímpar em face do julgamento e da morte, ou simples figurante numa conspiração de ricos e poderosos?


 
Manhã de 21 de abril de 1792. O condenado é conduzido pelas ruas do Rio de Janeiro, cercado pela tropa, desde a prisão até o patíbulo instalado no largo da Lampadosa. A cabeça e a barba raspadas, coberto por uma túnica grosseira e portando um crucifixo, sobe calmamente os degraus, acompanhado do frei encarregado de lhe dar o amparo de orações na hora da morte. A multidão reunida assiste a tudo consternada. Ao atingir o patamar, o homem dirige-se ao carrasco e pede-lhe que abrevie seu sofrimento, ao que este responde pedindo perdão, pois apenas cumpria o que mandava a lei. Tão logo o corpo ainda vivo do Tiradentes projetou-se no espaço vazio, o carrasco Capitania jogou-se sobre seus ombros, firmando-se na corda e forçando seu peso sobre o do enforcado para apressar sua morte.

Cumpria-se assim a sentença pronunciada três dias antes, que condenava o réu "a com baraço e pregão ser conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas" (sic).

A visão derradeira dos moradores da capital da colônia de Joaquim José da Silva Xavier é bem distinta da figura presente até hoje no imaginário nacional, que remete a Jesus Cristo. Quase três anos antes, o herói da Inconfidência fora preso sem resistência, tentando se esconder. Tiradentes também tinha outras alcunhas, como "o Corta-vento" e "o Liberdade". São detalhes pouco conhecidos, mas não menos importantes para entender quem era ele e seu papel na conjuração, muito além dos mitos construídos a partir do fim do século 19, quando se formava a República brasileira.

Nascido em 1746, na fazenda do Pombal, perto de São José Del Rei do Rio das Mortes (hoje a cidade de Tiradentes), Joaquim José era o quarto dos sete filhos de Domingos da Silva Santos e Antônia da Encarnação Xavier. Aos 11 anos tornou-se órfão. Até perto dos 20, labutou com os irmãos nas terras herdadas do pai, ao mesmo tempo que praticava as artes de dentista aprendidas com o tio e padrinho. Por essa época resolveu comprar algumas mulas, escravos, mercadorias para tentar a vida como tropeiro nos sertões de Minas Gerais e nas vilas do Caminho Novo, que levava ao Rio de Janeiro. Chegou até a Bahia, mas os negócios mal o sustentavam. Desistiu de vez depois de ter sido preso (perto da atual Diamantina) ao tentar defender um escravo que era espancado pelo dono, um poderoso fazendeiro.

Até 1775, perto dos 30 anos, sobreviveu como dentista, ganhando por isso o apelido de "Tira-dentes". Trabalhava ocasionalmente também como minerador e como médico, em vista dos conhecimentos sobre plantas medicinais adquiridos com seu primo, frei José Mariano da Conceição Vellozo, consagrado botânico à época. Cansado das atividades errantes pouco rentáveis, alistou-se na tropa paga de Minas, o Regimento de Cavalaria, e recebeu o posto de alferes - hoje equivalente ao de subtenente.


Sem recompensa

Muito cedo ele se destacou na função, em missões que envolviam o conhecimento de assuntos que iam além do esperado em sua posição. Serviu no Rio e comandou o destacamento de Sete Lagoas, na principal via de ligação entre Minas e a Bahia. Em 1781 foi transferido com a determinação de construir uma variante do Caminho Novo, até o Registro de Paraibuna. Era um estudioso autodidata de mineralogia e outras ciências da natureza. Em 1783, foi novamente realocado para combater uma temida quadrilha de assaltantes que infernizava a vida dos viajantes na serra da Mantiqueira. Mesmo em menor número, a tropa do alferes conseguiu derrotar o bando do Montanha, que tinha mais de 30 homens.

As qualificações de Tiradentes eram reconhecidas mas não recompensadas. Assistia indignado à promoção de colegas, enquanto suas atribuições só aumentavam. Numa das missões, o governador Luís da Cunha Meneses determinou que participasse do grupo encarregado de fazer o levantamento geológico e mineralógico do leste de Minas, na fronteira com o Rio, área então fechada à mineração. E justificou a ordem devido à "notória inteligência mineralógica" do alferes.

Nem assim conseguiu ele uma promoção. Formalizou queixa por isso, mas o governador afirmou que o militar "não passava de um mariola a quem se podia dar com um pau". Humilhado, Tiradentes pediu licença da tropa e requereu a ocupação de terras entre os municípios de Matias Barbosa e Simão Pereira, na divisa entre Minas e o Rio. Sem recursos e tino comercial, foi levado novamente à falência, tendo apenas suas habilidades de dentista para afugentá-lo da miséria.

Confirmada a sina de ter de viver sob soldo, o alferes voltou ao regimento, sendo logo encarregado de missão que o levaria a várias viagens ao Rio de Janeiro. Pôde, então, bem estudar o solo e o sistema fluvial da região, elaborando planos para o aproveitamento das águas locais, de modo a solucionar o grave problema de abastecimento da capital da colônia.


Conspirador urbanista

A abrangência e a viabilidade das propostas do militar são surpreendentes e estão entre suas facetas menos conhecidas. Apresentou projetos de canalização dos rios Maracanã e Andaraí, sugeriu a drenagem de alguns mangues e fez ver a possibilidade de aproveitamento dos desníveis dos córregos Catete, Comprido e Laranjeiras para a instalação de moinhos. Também propôs a construção de armazéns e trapiches na área do porto que permitiriam a carga e descarga de vários navios ao mesmo tempo. Idealizou ainda um serviço de barcas ligando o Rio a Praia Grande, em Niterói.

Os administradores desconsideraram os planos; só tinham olhos para a cobrança de impostos. Menos de 30 anos depois, porém, dom João VI iniciaria obras na capital nos mesmos moldes das ideias de Tiradentes. Em 1889, projetos de saneamento do engenheiro Paulo Frontin confirmaram a validade das propostas.

O apetite fiscal da coroa era tão grande quanto a dificuldade em quitar suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco produzia além de vinhos e quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o que consumia. O ouro brasileiro era a principal moeda de pagamento, mas, a partir da segunda metade do século 18, já dava mostras de esgotamento.

Foi nesse período, entre 1786 e 1789, que Tiradentes passou a conspirar. A voracidade da coroa - que cobrava um quinto de tudo o que fosse recolhido na atividade mineradora (veja nas págs. 30 e 31), bem como outros tributos sobre o comércio, a lavoura e a pecuária -, além da notória corrupção do governador Cunha Meneses, fazia acumular o descontentamento em toda a capitania de Minas. À insatisfação sobre a carreira no regimento, Joaquim José somava novas ideias. Fez sua cabeça na biblioteca do cônego Luís Vieira da Silva. Ali conheceu as teses dos franceses Rousseau, Montesquieu e outros iluministas, que secundavam o pensamento do inglês John Locke.

A liberdade emergia como um bem inato do homem. Cada um deveria ser livre para agir segundo apenas sua consciência e as normas democraticamente definidas por sua comunidade. Assim repetia o alferes onde quer que estivesse, e sempre exaltado, o que lhe valeu uma série de outros apelidos, como "o República", "o Liberdade", "o Gramaticão" e "o Corta-vento". Costumava circular com livros debaixo do braço, inspirado também pela ação dos norte-americanos, que haviam se separado do Império Britânico e implantado um sistema federalista de governo (1776). Joaquim José estava sempre afirmando que cabia aos brasileiros dirigir sua própria república. Obcecado por essas ideias e vendo que elas também ocupavam mentes mais ilustres, começou a reunir-se com personalidades de Vila Rica (hoje Ouro Preto), como Tomás Antônio Gonzaga e Inácio José de Alvarenga Peixoto (veja galeria de personagens na pág. 35).

José Álvares Maciel foi outro importante conspirador. Pensador, idealista, mas de pés no chão. Apesar de Tiradentes ter se apresentado aos julgadores como o único líder fático do movimento, deve ser concedida a Maciel a liderança das ideias. Estudioso da filosofia dos franceses e da formação dos Estados Unidos, teve contato indireto com Thomas Jefferson, através de um amigo comum, um estudante brasileiro na França, José Joaquim da Maia, que mantinha correspondência com o então embaixador americano em Paris, buscando apoio para um desejado movimento de independência. Ao lado de Domingos Vidal Barbosa, Maciel elaborou as diretrizes para a nova república.

Não bastaria tornar o Brasil independente, era preciso dar-lhe também as condições para se manter como nação livre e forte. Para isso, deveria ser dedicado especial esforço à educação do povo, ainda que o fim da escravidão estivesse nos planos de forma apenas mitigada. Seriam criadas escolas, uma universidade em Vila Rica, e a capital transferida para São João Del Rei. Seria implementada a construção de fornos siderúrgicos e a fabricação de todos os produtos que até então só eram obtidos de Portugal.

Advogados, bacharéis, médicos, membros da Igreja, militares, gente do povo, a insatisfação parecia generalizada. E os conspiradores pretendiam fazer uso dela, exacerbada diante da perspectiva de uma nova derrama - o confisco de bens para completar os débitos acumulados na arrecadação mínima de 100 arrobas de ouro (1470 kg) por ano - esperada para o início de 1789, sob as ordens do novo governador, Luís Furtado de Mendonça, o visconde de Barbacena.

Tiradentes se sobressaía como um dos líderes militares do movimento ao lado de um velho conhecido a quem fora subordinado: o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, comandante do Regimento de Cavalaria Regular das Minas Gerais. Também participavam de reuniões para o levante os coronéis Domingos de Abreu Vieira e José Aires Gomes, das forças auxiliares, e até o coronel Joaquim Silvério dos Reis, que viria a ser o grande traidor dos rebeldes.

Por pretender atrair a todos, dos mais nobres aos mais humildes, o movimento acabou por dar espaço a gente como o português Silvério dos Reis e outros traidores: Ignácio Correa Pamplona e Basílio de Brito Malheiros. Eles não titubearam em denunciar a conspiração ao visconde.

A revolta fora planejada para estourar no dia da derrama. A senha do movimento era "tal dia é o batizado", a data do confisco. Tiradentes e Andrade desencadeariam as ações em Vila Rica, que culminariam com a tomada do palácio, a degola de Barbacena e apresentação de sua cabeça ao povo, que seria então chamado a apoiar uma junta provisória de governo. O Rio seria ocupado em seguida e conspiradores acionados também em São Paulo e na Bahia. Mas, a essa altura, o governador já sabia da trama.


Erro

Planos escritos de ação para o levante nunca foram recuperados. A reconstituição dos acontecimentos e do papel dos participantes sempre foi dificultada pela escassez de documentação. Mas está claro que, em todo o planejamento, faltou cogitar saídas alternativas caso algo desse errado. Erro crasso, considerando haver no grupo militares de alta patente e o próprio Tiradentes, que já demonstrara astúcia e senso estratégico na derrota do bando do Montanha. Foram ingênuos os inconfidentes. Bastou o governador suspender a derrama e o tal dia não aconteceu. O burburinho sobre o levante era considerável, e, a partir das informações de Silvério, foram emitidas ordens de prisão em Vila Rica e no Rio de Janeiro. Joaquim José da Silva Xavier, que estava lá em busca de novas adesões ao movimento e evitando o excesso de exposição em Minas, foi seguido por vários dias e preso no sótão da casa de Domingos Fernandes da Cruz, em 10 de maio de 1789, onde se escondera. Estaria armado, mas preferiu não reagir.

O tribunal (uma comissão especial formada por desembargadores da Casa de Suplicação de Lisboa) culminou com a condenação de 28 réus, além de Tiradentes, chegando a impor penas à memória e aos descendentes de outros três falecidos na prisão. A pena de morte aplicada a dez dos conjurados, porém, foi comutada na última hora em degredo perpétuo pelo regente dom João, em nome da rainha dona Maria I. A forca restou só para o alferes. Há quem afirme que, dessa forma, Portugal quis fazer entender a conspiração como aventura de um reles e tresloucado dentista, que com lábia aliciou mentes mais ilustres.

Kenneth Maxwell, numa das mais importantes obras sobre a Inconfidência, A Devassa da Devassa, esboça a tese de que Tiradentes seria mero "bode expiatório", elemento apenas periférico dentre os plutocratas e intelectuais que compunham o movimento nascido não apenas de ideais, mas fundamentalmente de interesses econômicos. O mesmo brasilianista, porém, não deixa de reconhecer o caráter ímpar do mártir, de exceção "em uma história particularmente carente de grandes homens". Durante os interrogatórios sempre reclamou Joaquim José a exclusiva culpa pela iniciativa da sedição, inocentando seus companheiros de outros crimes que não fosse o de ouvir suas ideias.

Qualquer que tenha sido seu papel, Tiradentes tornou-se um autêntico herói nacional. Primeiro foi adotado pelo movimento republicano, que o elegeu como mártir cívico-religioso e antimonarquista, fazendo prosperar as representações que o aproximam de Cristo. O 21 de abril tornou-se feriado nacional em 1890. Tiradentes teve também exaltada sua imagem de militar patriota, quando nomeado patrono da nação pelo governo militar, em 1965, enquanto os movimentos de esquerda não deixaram de recorrer a ele como símbolo de rebeldia. "O segredo da vitalidade do herói talvez esteja afinal nessa ambiguidade, em sua resistência aos continuados esforços de esquartejamento de sua memória", diz o historiador José Murilo de Carvalho em A Formação das Almas.

"Pois seja feita a vontade de Deus. Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria", teria dito Tiradentes ao ouvir serenamente a sentença. Trinta anos depois da execução, dom Pedro I, o herdeiro da coroa que o esquartejara, proclamava a independência do Brasil. Era a prova de que os propósitos de Joaquim José foram plantados em terra fértil. Um dos conjurados, José de Rezende Costa, filho, tornou-se constituinte na Assembleia de 1823, a primeira da nova nação brasileira

As crises da igreja católica - Habemus crisem


A renúncia de Bento XVI é mais um episódio da longa história do papado. Em 2 mil anos, a Igreja encarou assassinatos, sequestros, invasões, cismas e imoralidades - agora está diante de escândalos financeiros e casos de pedofilia



Nunca aconteceu nada igual nos últimos seis séculos. Dos 266 homens promovidos a representantes diretos de Deus na Terra, somente 14 deixaram o cargo com vida. Ao anunciar ao mundo sua renúncia, Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, sabia bem o alcance de sua decisão. "Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino", afirmou em latim, diante de um grupo de religiosos aturdidos.

"Ele não aguentou os escândalos de pedofilia, as divisões políticas internas e as graves suspeitas de irregularidades financeiras", diz o pesquisador Anura Guruge, autor de The Next Pope. "O Vaticano está em crise mais uma vez. Mas essa situação não é nada perto de outros problemas que a Igreja já enfrentou no passado." Conflitos, de fato, acompanham o cristianismo desde sua origem. "Ao longo da história, as crises do Vaticano são causadas principalmente por três motivos: divergências internas, que provocam rompimentos, como o cisma com Bizâncio e o de Avignon; falta de seriedade e ética de seus líderes, o que facilita os casos de corrupção; e incapacidade para lidar com pressões externas, algo que abalou a Igreja, por exemplo, durante o escândalo do Holocausto", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis, autora de The Popes: Vice, Murder and Corruption in the Vatican (Os papas: vício, morte e corrupção no Vaticano, sem tradução).

Nas próximas páginas, você vai conhecer outros momentos em que o cristianismo enfrentou grandes turbulências. "A crise vai ser superada, e muitas outras virão", diz Donald Prudlo, da Universidade do Alabama. "Estamos falando da instituição mais antiga e resistente do mundo."


Divisões e cismas

As confusões no catolicismo estão em sua origem. Os cristãos nem se preocuparam em se organizar - Jesus tinha prometido que voltaria e eles achavam que seria logo. "Nas primeiras décadas, a única reunião de encontro entre os fiéis era um jantar semanal para relembrar a Santa Ceia", diz o medievalista Roger Collins.

À medida que o tempo passava, o volume de fiéis crescia e a perseguição dos romanos aumentava, foi preciso adotar uma série de medidas práticas. Cada uma das principais cidades do império ganhou um bispo, que chefiava os seguidores. Foi só com o passar do tempo, aliás, que o bispo de Roma se tornou mais importante do que os colegas.

Outro problema era unificar doutrinas. No século 4, pelo menos cinco grupos defendiam linhas diferentes e tinham bispos influentes. Dois deles, em especial, foram derrotados de-pois de muito trabalho. Para os marcionistas, seguidores de Marcião de Sinope (c.110-160), Jesus nunca teve um corpo físico e o judaísmo não deveria ser a base da nova religião. Para os arianos, seguidores do presbítero Ário (256-336), de Alexandria, não havia Santíssima Trindade: Jesus era filho de Deus, mas não parte dele. A linha de pensamento que conhecemos hoje venceu a disputa depois de décadas de conflitos.

O primeiro grande concílio, em Niceia, em 325, era tão controlado pelos arianos que o bispo de Roma, Silvestre I, se recusou a comparecer. Mas, sob o comando do imperador romano Teodósio I (347-395), os arianos foram derrotados tempos depois. A transformação do bispo romano em papa (ou pai) da Igreja desagradou os religiosos de Constantinopla. Desde a queda do Império Romano, em 476, eles é que estavam no comando. O cisma mesmo, que criou a Igreja Cristã Ortodoxa, só foi formalizado no século 11. Mas, ao longo desses 1 100 anos desde a morte de Jesus, foram muitas as brigas.

Antipapas europeus

As rixas entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla eram constantes. Os bispos da cidade fundada pelo primeiro imperador cristão, Constantino, se ressentiam por não ter voz em decisões importantes sobre rituais ou normas de conduta, como o celibato (que a Igreja oriental não aceita). Os dois bispados romperam entre 482 e 519 e entre 866 e 879, mas acabaram se reconciliando. A falta de seriedade dos papas da pornocracia (veja na pág. 32) complicou as relações com os bispos orientais. Em 1054, o papa Leão IX tentou reagir excomungando o patriarca de Constantinopla da época, Cerulário, que enviou sua própria carta de excomunhão para Roma. Era o rompimento definitivo. Cerulário declarou fundada a Igreja Ortodoxa, enquanto Leão declarou que os cristãos de Roma eram membros da única fé, eterna e universal, católica (expressão que vem do grego katholikos). A excomunhão mútua não foi levada a sério na época, já que não era a primeira vez que a Igreja das duas cidades rompia. A situação da Europa e do Oriente, as Cruzadas e a expansão do Islã radicalizaram a separação, que parecia temporária. As duas Igrejas nunca mais reataram.

Durante 39 anos, a Igreja esteve rachada dentro da Europa. O cristianismo ocidental teve dois papas simultâneos - por um curto período, eles chegaram a ser três. Não que os antipapas fossem novidade. Ao longo da história, foram mais de 30, começando cedo, com Hipólito de Roma, em 235. Era comum que cardeais insatisfeitos se declarassem papas e levassem consigo parte do clero. Também não era raro que, em períodos mais turbulentos, os chefes da Igreja se mudassem de Roma. Papas governaram de outras cidades italianas, como Viterbo, Orvieto e Perugia. Pelo menos três deles, Urbano IV (1200-1264), Clemente IV, (?-1268) e Celestino V (c.1260-1314), nunca estiveram em Roma. Mas o cisma de Avignon era um problema muito maior. Dessa vez, a França quase virou a sede do comando da Igreja.

A eleição de Urbano II, papa entre 1088 e 1099, revoltou os cardeais franceses, que ques-tionaram sua personalidade. Diante do impasse, elegeram Roberto de Geneva, que assumiu com o nome Clemente VII e se declarou papa - hoje considerado antipapa. Cada lado arregimentou nobres de diferentes países e o cisma se estabeleceu. Papas e antipapas se seguiram por razões políticas - diferentemente do cisma com o Oriente, não havia disputas teológicas em jogo.

Em 1409, um concílio em Pisa resolveu que os dois papas não tinham autoridade alguma e elegeram um terceiro. Mas ninguém renunciou, e a Igreja passou a ter três líderes. Foi preciso que um antipapa, João XXIII, fosse preso e renunciasse, outro, Bento XIII, fosse deposto, e o papa oficial, Gregório XII, renunciasse para que, em 11 de novembro de 1417, Martinho V (1368-1431) colocasse ordem no Vaticano.

Pornocracia vaticana

Desde o ano 550, o papa não é considerado santo assim que morre, mas precisa ser submetido ao processo tradicional de canonização. Faz sentido - tanto é que, dos 266 papas, apenas 78 são considerados santos. Muitos estavam bem longe disso e chegaram a criar uma tradição de costumes pouco cristãos dentro da Igreja. Em dois períodos em especial, os sumos pontífices transformaram a Santa Sé num reino bem terreno - e dos mais libertinos. "Quando se consolidou como uma força influente, o papado caiu nas mãos de famílias nobres que dominavam a Itália e queriam usar a influência da religião para expandir seu poder", afirma a historiadora Brenda Ralph Lewis.

A baixaria começou no século 10, o período conhecido, dentro da própria Igreja, como saeculum obscurum - ou, como alguns historiadores preferem, a "pornocracia" do Vaticano -, marcado pelo controle de famílias nobres em resultado das tensões iniciadas no fim do século anterior. Foi um período tumultuado: entre os anos 872 e 904, por exemplo, a Igreja teve 24 papas, e quatro deles duraram menos do que um ano no posto. Em 896, Estêvão VII (?-897), resolveu julgar o cadáver do pontífice anterior. Com isso, protagonizou uma das cenas mais bizarras da história do papado. Para o julgamento, ele exumou e mutilou o cadáver do papa Formoso (816-896). Se Estêvão tinha poder para agir assim sem ser questionado, é porque, desde o século 8, a Igreja havia se aliado aos reis francos, Pepino e Carlos Magno, que garantiram aos papas o status de chefes de Estado, com território e exército. "A pornocracia do Vaticano é conhecida pelos papas jovens, alçados ao poder por nobres influentes, que se comportavam como monarcas sem moral, e não como líderes religiosos", afirma o pesquisador Anura Guruge. No centro desses 60 anos intensos está uma nobre chamada Marosia.

Aos 15 anos, Marosia, reputada como uma bela jovem na época, foi vendida por sua mãe, Teodora, como amante ao papa Sérgio III, papa entre 904 e 911, e que na época tinha 45 anos. Marosia e Sérgio tiveram um filho, Alexandre de Tusculum - que em 931 se tornaria o papa João XI. Sérgio foi encontrado morto, possivelmente envenenado. Seus sucessores Anastácio III e Lando I duraram, ambos, dois anos e meio no posto e morreram em circunstâncias não esclarecidas.

João X (860-928), que veio depois, era amante de mãe e filha, Teodora e Marosia. Irritada por não receber a atenção que queria, Marosia se casou novamente, desta vez com Guido de Túscia. Guido prendeu e torturou João X, deposto do papado em vida para que outro amante de Marosia, Leão VI, assumisse o cargo em 928. Sete meses depois, Leão VI foi assassinado. Em seguida, o filho de Marosia com Sérgio III se tornou papa, aos 21 anos. Muitas confusões depois, em 955, chegou ao comando da Igreja um neto de Marosia, Otaviano, de 18 anos. O papa João XII entraria para a história por estuprar fiéis, doar cálices de ouro a suas mulheres e dormir com a amante de seu pai e sua própria mãe, tudo dentro das instalações papais. Com sua morte, em 964, a pornocracia acabou.

Sobrinhos

Por algum tempo, o Vaticano tentou resgatar suas origens cristãs. Não foi uma evolução linear: em 1032, Bento IX chegou ao papado com cerca de 20 anos, abandonou o cargo para se casar, voltou em 1044, vendeu o papado por 680 quilos de ouro um ano depois, retomou o pontificado em 1047, o abandonou em 1048, foi excomungado em 1049 e passou o resto da vida tentando ser papa de novo - nesse meio-tempo, acabou acusado de ter amantes, dormir com cardeais e estuprar fiéis de ambos os sexos.

Em 1274, os papas passaram a ser eleitos por um concílio de cardeais, uma medida que dificultou a indicação de garotos que, em alguns casos, nem padres eram - hoje o papado é o cargo eleito mais antigo de que se tem notícia, ainda que a democracia vaticana seja restrita ao seleto grupos de cardeais da Igreja. Mas, no século 13, mais uma vez a influên-cia de uma nobreza sem lastro religioso tomou conta do Vaticano. Famílias poderosas resolveram aumentar seu poder político e financeiro com a força do papado. Durante a ascensão dos Bórgias, o Vaticano foi ocupado por uma série de pontífices que comprou brigas com famílias inimigas, indicou familiares para cargos cruciais da Igreja e instalou verdadeiros bordéis dentro das instalações papais. A nova crise moral foi mais longa: durou dois séculos e deu origem à palavra "nepotismo": no original, em latim, significava "indicar um sobrinho", uma prática muito comum na época. Como disse Leão X (1475-1521) à família ao assumir o cargo: "Vamos aproveitar o papado, já que Deus nos deu". Foi durante sua gestão, aliás, que teve início a Reforma protestante. Inocêncio VIII (1432-1492) deu cargos de influência a seus dois filhos. Paulo III (1468-1549) teve quatro filhos e fez de um deles, Pier Luigi Farnese, duque de Parma. Por sua vez, Júlio III (1487-1555) teve um longo caso com o cardeal Innocenzo Ciocchi del Monte (leia na página 47).

Venda de indulgências

Antes de o cisma de Avignon quase rachar a cristandade da Europa Ocidental, o Vaticano teve de lidar com outro foco de descontentamento na França. No século 12, os cátaros se espalharam pelo sul do país, pregando uma volta às origens do cristianismo e questionando a liderança papal. Para perseguir os revoltosos, surgiu em 1184 o tribunal da Santa Inquisição. Os cátaros foram massacrados, mas o tribunal continuou existindo para perseguir quaisquer outros inimigos da Igreja, fossem mulheres, pensadores ou homossexuais - em 1252, o uso de tortura para obter confissões foi autorizado.

No século 16, uma nova onda de descontentamento conseguiu dividir o cristianismo mais uma vez. A insatisfação de alguns líderes, como o monge alemão Martinho Lutero, com a con-dução da religião chegou ao auge durante o mandato do papa Leão X, de 1513 a 1521. O pontífice construiu a Biblioteca do Vaticano e tentou acelerar as obras de reconstrução da Basílica de São Pedro, iniciadas em 1505. Para pagar a conta, vendeu móveis, joias e objetos de decoração da cidade. E, principalmente, estimulou as indulgências, a absolvição total dos pecados em troca de dinheiro. O exagero foi tanto que o cardeal Alfonso Petrucci, de Siena, tentou matar o papa - ele e outros conspiradores foram descobertos e mortos por envenenamento.

Em 1517, Lutero pregou na porta da capela de Wittemberg suas famosas 95 teses, que questionavam a autoridade papal e davam início à Reforma Protestante. Foi um baque para Roma. Em pouco tempo, os cristãos da Europa Central, da Alemanha, da Holanda e da Inglaterra já haviam deixado a liderança do papa - boa parte dos franceses seguiu o mesmo caminho sem volta.

Em uma reação tardia, a Contra-Reforma católica acabou com a venda de indulgências em 1567 e declarou guerra aberta às novas denominações protestantes. A medida impediu que o racha fosse ainda maior, mas o estrago já estava estabelecido. Um dos efeitos colaterais foram as guerras religiosas que varreram a Europa durante as décadas seguintes. Em tempo: o tribunal da Inquisição existe até hoje. Agora se chama Congregação para a Doutrina da Fé. Entre 1981 e 2005, ficou sob o comando de Joseph Ratzinger, o agora papa emérito Bento XVI.

Acordo com o fascismo

A Igreja detinha um extenso território no meio das repúblicas italianas. Em 1870, porém, tudo isso tinha mudado. O papa foi convidado a deixar o palácio Quirinal, que passaria a abrigar o rei da Itália unificada. "A Igreja católica esteve muito perto de desaparecer. Foi uma das maiores crises de sua história", diz o jornalista espanhol Santiago Camacho. Se isso não aconteceu, foi graças a um acordo com o líder fascista Benedito Mussolini.

Em 1870, enquanto o Concílio Vaticano I declarava que o pontífice era infalível em matéria de fé e moral, os Estados Papais deixaram de existir e Pio IX (1792-1878) se tornou o último "papa-rei" - a perda de territórios tinha começado em 1859 e terminaria com o fim do controle sobre Roma. Em 1878, o corpo de Pio IX só não foi jogado no Rio Tibre (que já havia recebido os cadáveres de alguns outros papas ao longo da história) porque a multidão enfurecida foi contida pelos seguranças do Vaticano.

Nos anos 20, o catolicismo retomou parte de sua força com uma campanha para devolver à Igreja sua autonomia. A negociação foi conduzida pelos cardeais (e irmãos) Francesco e Eugenio Pacelli. Em 11 de fevereiro de 1929, Mussolini e o papa Pio XI se encontraram na residência papal, o Palácio de Latrão. A Igreja ganhou uma cidade autônoma dentro de Roma, além de US$ 90 milhões. Em troca, reconheceu a autoridade do regime fascista. Na Alemanha, um líder ambicioso comemorou o acordo: "O Vaticano confia nas novas realidades políticas muito mais do que o fez com a antiga democracia liberal. A Igreja reconhece que as ideias fascistas estão mais próximas da cristandade do que o liberalismo judeu". Seu nome: Adolf Hitler.

Em 1933, Eugenio Pacelli e Hitler, agora chanceler alemão, chegaram a um acordo, e políticos católicos apoiariam a lei que dava a Hitler poderes ditatoriais. Em 1939, Pacelli se tornou o papa Pio XII. "Mesmo quando o Holocausto era uma realidade, o papa falou poucas vezes condenando o massacre, e mesmo assim de forma ambígua", diz Camacho. Ainda hoje a postura dúbia de Pio XII provoca polêmica. "O papa não foi conivente com o nazismo, mas tampouco reagiu o suficiente."

Pedofilia e dinheiro

"No Vaticano, tudo o que não é sagrado é secreto", afirma o jornalista Santiago Camacho, autor de Biografia Não Autorizada do Vaticano. Mas, muitas vezes, é difícil manter em segredo o que não é sagrado. Os escândalos que atingiram a gestão de Bento XVI são casos que ocorrem há décadas e só vieram à tona nos últimos dez anos. Desde 2002, o clero vem sendo acusado de protagonizar milhares de casos de pedofilia.

Com a publicação, na época, de uma reportagem do jornal americano Boston Globe, começaram a vir a público centenas de acusações contra religiosos nos Estados Unidos, na Irlanda, no Canadá, na Austrália, na Alemanha, nas Filipinas, na Áustria, na Bélgica e na Argentina, entre vários outros países. As investigações retomaram casos mais antigos. E ainda causam estragos. O único cardeal do Reino Unido com direito a voto no conclave que elegerá o novo papa, Keith O¿Brien, renunciou no final de fevereiro, sob o peso de acusações de abuso sexual. Em 17 de dezembro, três cardeais entraram no apartamento do papa com um relatório de quase 300 páginas em mãos. Julian Herranz, Josef Tomko e Salvatore De Giorgi apresentaram o resultado de oito meses de investigação, encomendada pelo próprio Ratzinger, segundo reportagem do jornal italiano La Repubblica. Ao terminar de ouvir as informações, e com os papéis sobre sua mesa, o papa teria afirmado que a Igreja precisava de um homem capaz de realizar uma "ampla limpeza", de acordo com o jornal. A investigação documentaria a existência de um grupo homossexual, envolvendo padres e bispos, que faria parte de uma rede de prostituição de seminaristas, cantores de coro e imigrantes ilegais.

Os encontros entre membros do clero e garotos de programa seriam realizados em uma sauna de Roma, uma vila privada nos arredores da cidade, em um salão de beleza e na casa de um arcebispo italiano. Os envolvidos nesses casos, e também em escândalos de desvio financeiro, estariam sendo chantageados por outros grupos dentro do Vaticano - de acordo com o relatório, a cúpula da Igreja está dividida em vários partidos informais.

O relatório consolida o resultado de dez anos de escândalos recorrentes. Em 2011, o mordomo do papa, Paolo Gabriele, foi preso por roubar e repassar para o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi documentos pessoais de Bento XVI, incluindo cartas em que o chefe da Igreja era informado dos casos de pedofilia envolvendo o clero em todo o mundo. Um ano antes, em 2010, Angelo Balducci, então presidente do Conselho Nacional de Obras Públicas e consultor do Vaticano, foi pego usando o telefone para intermediar a contratação de jovens para serviços sexuais. Em uma das ligações, Balducci recomendava um garoto disponível para encontros: "Só te digo que ele tem 2 metros, pesa 97 quilos, está com 33 anos e é completamente ativo".

Entre 2002 e 2010, a promotoria de Justiça do Vaticano recolheu alegações contra 3 mil padres, acumuladas nos últimos 50 anos. Um estudo do psiquiatra americano Thomas Plante aponta que 4 392 religiosos católicos estão envolvidos em acusações de molestamento sexual a menores de idade. São mais de 10 mil vítimas, 80% delas meninos. Os processos legais contra paróquias católicas já somam mais de US$ 3 bilhões em indenizações só nos EUA. Oito paróquias decretaram falência. Em reação, Bento XVI pediu diversas desculpas públicas, em cartas e discursos, e afastou o padre mexicano Marcial Maciel (1920-2008), fundador da congregação Legionários de Cristo - Maciel, um ferrenho defensor público do celibato, mantinha relações sexuais com seminaristas jovens, teve seis filhos com duas mulheres diferentes e é acusado de abusar de dois deles.

"Bento XVI era o responsável por investigar esses casos desde 1983, quando se tornou prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1997, chegou a pedir ao papa João Paulo II para ser dispensado da função", diz a historiadora Brenda Ralph Lewis. "Ele demorou demais para agir, e só admitiu publicamente que a pedofilia era um problema quando não era mais possível esconder os casos". Antes disso, as denúncias foram tratadas como questão exclusiva dos bispos locais, que muitas vezes apenas transferiam os padres acusados para outras dioceses, onde eles continuavam em contato com crianças.

No mesmo dia de maio de 2012 em que o mordomo do papa foi formalmente acusado de roubar documentos, Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Instituto das Obras da Religião (IOR), o banco do Vaticano, recebeu um voto de desconfiança do conselho de supervisão e pediu para deixar o cargo. Em 2010, Bento XVI havia estabelecido uma nova legislação do IOR, com regras mais rigorosas. Pelo visto, aqui também agiu tarde demais.

Desde pelo menos os anos 40, o Vaticano vive cercado por sombras a respeito das operações financeiras de seu banco. Os escândalos envolvendo o IOR começam com a suspeita de lavagem de dinheiro nazista e passam pelo envolvimento de pessoas ligadas à máfia - o arcebispo Paul Marcinkus, que comandou o banco entre 1971 e 1989, chegou a ser conhecido como o "banqueiro de Deus" antes de protagonizar, em 1982, o escândalo do rombo de US$ 1,5 bilhão no Banco Ambrosiano, de Milão. Dois meses antes, o presidente do Ambrosiano, Roberto Calvi, foi encontrado enforcado em uma ponte de Londres. Uma perícia comprovou que ele foi assassinado e depois peduraram seu corpo para simular suicídio. "Parecia estranho que os escândalos financeiros tenham vindo à tona nos últimos anos ao mesmo tempo que os casos de pedofilia", afirma o historiador Donald Prudlo. "Com as informações sobre o relatório de 300 páginas entregues ao papa, tudo se encaixa."

Os papas que saíram vivos

Como regra, o papa só deixa o cargo ao morrer. As renúncias em vida são exceções. De todos os pontífices que a Igreja teve até hoje, só 14 pediram para sair ou foram forçados a se afastar. "Até o século 6, alguns pontífices acabaram presos e exilados, e tinham que deixar o comando para abrir espaço para outro líder", afirma Roger Collins, autor de Keepers of the Keys: A History of the Papacy. "A partir do século 9, e até o século 16, as disputas internas por poder é que deram o tom das renúncias."

Fazem parte do primeiro grupo Ponciano (230-235), condenado pelo imperador romano Maximono Trax a trabalhos forçados na Sardenha. O segundo inclui Celestino V (1294): o último líder não eleito por um conclave publicou um decreto autorizando os papas a renunciar e fez uso dele.

O último a deixar o cargo antes de Bento XVI foi Gregório XII (1406 a 1415). Ele conviveu com dois antipapas e, aos 90 anos, durante o Conselho de Constança, decidiu renunciar para que um nome de consenso assumisse e acabasse com o cisma de Avignon. Uma curiosidade: Ratzinger é o terceiro Bento que renuncia ao papado. Os outros dois foram Bento V (964) e Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048).

O último pontífice?

Depois de Bento XVI, o próximo papa vai ser o último - terá nascido em Roma e vai assumir o nome Pedro. Durante sua gestão, o Apocalipse vai começar. Ao acreditar nessa profecia, não só o papado está acabando como o fim do mundo está próximo. Publicada em 1595 pelo monge beneditino Arnold de Wyon, as Profecias de Malaquias são creditadas ao primeiro santo da Irlanda, que viveu entre 1094 e 1148. Durante uma visita ao Vaticano, em 1139, Malaquias teria visto os últimos dez papas e descrito cada um deles com frases curtas em latim. Na equivalência estabelecida entre os pontífices e o texto do século 16, João Paulo II seria De Labore Solis ("Do Trabalho do Sol") e Bento XVI, De Gloria Olivae ("Da Glória da Oliveira"). O próximo, e último da lista, seria Petrus Romanus ("Pedro Romano"). A conferir.

Papas nada cristãos

A lista dos pontífices que envergonharam Roma

Estevão VII (896 A 897)

Para se vingar de seu antecessor, Formoso (891-896), exumou o corpo enterrado nove meses antes, colocou nele as vestes papais e interrogou o cadáver.


Sérgio III (904 a 911)

Mandou matar o papa Leão V (903) e o antipapa Cristóvão. Foi amante da nobre italiana Marosia (veja na pág. 32), com quem teve um filho - que se tornaria papa.


João XII (955 a 964)

Cegou e mandou arrancar a pele de cardeais. Escolhia mulheres entre os peregrinos ao Vaticano para estuprar. Foi morto a marretadas pelo marido de uma amante.


Bento IX (1032 a 1044; 1045; 1047 a 1048)

O único a assumir o papado em três ocasiões diferentes. Na segunda, vendeu o cargo por 680 quilos de ouro ao sucessor, Gregório VI.


Nicolau III (1277 a 1280)

Usou o cargo para transformar parentes em cardeais e distribuir riquezas do Vaticano à família. Na Divina Comédia, de Dante, está no 8º círculo do inferno.


Bonifácio VII (974 a 984)

Para chegar a papa, estrangulou com as próprias mãos o pontífice Bento VI. Foi deposto, mas voltou ao cargo depois de matar mais um papa, João XIV.


Alexandre VI (1492 a 1503)

Teve várias amantes e pelo menos nove filhos - um deles supostamente com sua própria filha, Lucrezia. Em suas festas, garotos nus saltavam de dentro de bolos.


Urbano VI (1378 a 1389)

Mandava torturar cardeais e reclamava que eles não estavam gritando alto o suficiente. Afastado do cargo, viajou para Avignon e virou o antipapa Clemente VII.

Muralhas de Adriano: os limites do Império Romano


Depois de muitas tentativas de tomar o atual território da Escócia, as legiões romanas resolveram levantar um muro para evitar invasões bárbaras


Retratada em brochuras como um programa familiar, unindo história, natureza e exercício num mesmo passeio, a Muralha de Adriano, nas proximidades da fronteira entre a Inglaterra e a Escócia, é hoje uma das principais atrações turísticas do norte inglês, contando com o status de Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Porém, o que hoje é lugar para piqueniques e caminhadas ecológicas e mesmo um serviço de chá tradicionalmente britânicos, é o marco de uma das mais bizarras e sangrentas campanhas militares do Império Romano. O símbolo de uma história que mistura tons de resistência dignas de um episódio das aventuras de Asterix com os efeitos colaterais da grandiosidade geográfica e política de Roma. E que ainda provoca surpresas em arqueólogos e historiadores.


Erguida no ano 122, a mando do imperador Adriano, a muralha, que se estendia por mais de 120 km, o suficiente para cobrir de costa a costa a região em que o território britânico afunila, teve um objetivo duplo: consolidar os ganhos territoriais obtidos pelas incursões romanas nas Ilhas Britânicas e ao mesmo tempo esfriar os ânimos do que pode ser descrito como uma guerrilha vinda do norte. Por décadas, Roma tentara e fracassara na missão de subjugar os povos do norte da ilha batizada de Britânia. E novas descobertas arqueológicas sugerem que não foi por falta de tentativas graúdas. Um estudo publicado no ano passado pela arqueóloga Rebecca Jones, do Instituto de Patrimônio Arqueológico Escocês, garante ter encontrado vestígios de nada menos que 260 fortificações romanas no território do que hoje conhecemos como Escócia.

Guerrilha
A quantidade de fortes corresponde ao maior esforço de pessoal do império numa campanha europeia e que torna ainda mais estranha a história das incursões na região. Especialmente se comparada com a relativa facilidade com que o restante das ilhas tinha sido dominado. "O exército romano era mais bem equipado, treinado e disciplinado que as tribos do norte. Era uma força profissional lutando contra a rebeldia isolada e fragmentada das tribos. Mas ataques típicos de guerrilha fizeram a vida dos romanos muito complicada", diz Jones.

Não que Roma simplesmente tivesse desfilado pelo resto do país. O império experimentou um histórico de rebeliões ao sul, a mais famosa delas o levante comandado pela rainha celta Boadicea, em 61, e que resultou na destruição de Londinium, o povoado romano que deu origem a Londres. As primeiras campanhas tiveram início ainda com Júlio César, em 55 a.C., quando os generais romanos suspeitavam que a proximidade geográfica com a Gália resultava em colaboração contra o domínio imperial.


Mas foi quase um século depois, por volta do ano 43, e com Cláudio no trono, que as operações se intensificaram. O que hoje é conhecido como Inglaterra, em especial a região sul e leste, foi conquistado. Na década de 70, as atenções se voltaram para o norte. Além da busca por escravos e metais, conquistar era uma demonstração de poder para os imperadores.

No norte estavam habitantes conhecidos como caledônios. De origem celta, mostraram-se um inimigo mais voluntarioso do que as legiões esperavam. Aproveitando-se de aliados naturais, como o terreno montanhoso que marca boa parte da Escócia, faziam ataques-surpresa em vez de buscar o confronto direto. No mais famoso e ousado deles, uma emboscada noturna em 83 teria causado sérias baixas à IX Legião.

No ano seguinte, a batalha de Monte Graupius resultou numa carnificina maior a favor das tropas do general Julius Agricola. Parecia apenas questão de tempo para que houvesse o controle total do norte. Segundo o historiador romano Tácito, a ferocidade do combate foi tamanha que os caledônios que bateram em retirada mataram suas próprias mulheres e crianças temendo a represália romana. "Se os romanos tivessem colocado mais tropas, teriam subjugado os rebeldes. Mas Roma tinha fronteiras extensas, não era possível canalizar todos os recursos para a região", diz Jones.

O controle total jamais veio. Em séculos de presença nas ilhas, os romanos jamais controlaram toda a Escócia. As razões provocam divergências no meio acadêmico, mas as evidências arqueológicas são de que, ao contrário da Inglaterra, a presença romana na Escócia foi mais militar do que civil, ainda que haja registros de tribos que mantinham relação amigável com os romanos. No geral, porém, o clima era pesado. Em textos antigos romanos, por exemplo, os caledônios eram descritos como encrenqueiros e bárbaros.

Tribos hostis

"Foram repetidas campanhas para tentar subjugar as tribos caledônias. Operações brutais, sangrentas e malsucedidas para a máquina de guerra romana. As legiões tinham que lidar com tribos hostis e com as próprias dificuldades logísticas proporcionadas pela falta de uma estrutura maior e pelos problemas em Roma", diz Jones. Há uma corrente que vê nos tropeços romanos um problema causado pelo próprio expansionismo imperial. Agricola, por exemplo, foi chamado de volta à Roma em caráter de urgência após o evento de Monte Graupius para ajudar a lidar com uma crise militar nas fronteiras do Reno e do Danúbio, mais próximas do coração do império e mais problemática que os "guerrilheiros" caledônios.

Outra muralha

"Precisamos deixar um pouco de lado o romantismo. Roma tinha plenas condições de consolidar seu domínio sobre os escoceses, mas fatores muito mais importantes mudaram o foco das ações militares. A crise no Danúbio enfraqueceu a presença militar na Caledônia. Foram eventos de força maior que impediram uma conquista total, não algum tipo de heroísmo tribal", afirma Bill Hanson, professor de arqueologia da Universidade de Glasgow e especialista do chamado "perío-do romano¿¿ britânico.

A construção da Muralha de Adriano é vista como uma mudança de estratégia. O imperador mostrava-se menos entusiasmado com a expansão a todo custo e os objetivos de captação de recursos tinham sido atingidos com o domínio no sul. "Adriano até recuou de algumas campanhas iniciadas no reinado de seu antecessor, Trajano. Não havia uma obsessão em terminar o trabalho, especialmente quando Roma tinha que priorizar o uso de seus recursos militares em áreas mais sensíveis", diz Hanson.

O fato é que sucessores de Adriano voltaram à carga. Em 138, o imperador Antonino ordenou nova invasão. As tropas romanas avançaram de forma significativa em território escocês, a ponto de construírem uma nova muralha, a de Antonino, 160 km ao norte da de Adriano e já bem mais próxima das Highlands. Era menor, com 63 km de extensão, e erguida com barro em vez das pedras da fortificação original. A construção durou 12 anos, até 154. Apenas oito anos depois, as linhas romanas já tinham recuado para a Muralha de Adriano. O império faria mais quatro grandes invasões, incluindo uma, em 209, com 40 mil homens. Em 211, chegou-se a um armistício.

Latim
Os dominadores provaram do próprio remédio: no século 4, os caledônios lançaram uma ofensiva que a muralha não foi capaz de segurar. Às voltas com as invasões bárbaras em Roma, mais e mais tropas foram deslocadas das ilhas britânicas, até que em 410 teve fim a administração romana. Os romanos deixaram sua marca nos povos caledônios: além da adoção do latim como língua para assuntos burocráticos, os avanços semearam o cristianismo na região. Mas a resistência evitou que a Escócia experimentasse pontos positivos da ocupação. "A região não passou pelo mesmo crescimento de centros urbanos como no sul. Os romanos incentivaram a criação de cidades e isso se reflete no cotidiano britânico, em que a Inglaterra é mais desenvolvida que a Escócia", diz Hanson. Na Escócia, que em breve terá um referendo sobre sua independência do Reino Unido, o passado é explorado com orgulho. Turistas à parte, a Muralha de Adriano é um monumento que nem Mel Gibson e seu Coração Valente conseguem superar.

Berlim: a queda do muro


O último dia da construção que dividiu Berlim por 28 anos


 
Erguido em agosto de 1961, o muro de Berlim, que dividia a cidade em duas, foi o maior símbolo da Guerra Fria, que separou o mundo em dois blocos: os aliados dos Estados Unidos e os sob influência da União Soviética. Com a decadência desta última na década de 80, o muro caiu, em 9 de novembro de 1989. Era o fim da Guerra Fria.
5h10 - Demissão coletiva
Os jornais berlinenses circulam pela cidade dividida. As principais notícias se referem à demissão coletiva de membros da cúpula do poder comunista, entre eles o primeiro-ministro Willi Stoph, no dia 7 de novembro. Em 18 de outubro, o chefe de Estado da Alemanha Oriental e ícone de resistência à abertura política, Erich Honecker, já havia renunciado.
8h - Tensão pela manhã
A Alemanha comunista amanhece tensa, na expectativa do reflexo das demissões e da pressão da população. Cerca de 60 mil pessoas já haviam fugido para países do Ocidente, sobretudo para a Alemanha Ocidental, pela Hungria, desde a abertura das fronteiras do país vizinho, em setembro.
17h30 - Dia em branco
Apesar da pressão da população e da imprensa internacional, o governo permanece impassível e não há sinais de que algo vá acontecer. Não há sequer um pronunciamento durante todoo dia, como se nada estivesse ocorrendo. Para os alemães, parece que o dia vai terminar sem nenhuma novidade.
19h - Passe livre
Em uma entrevista coletiva, transmitida ao vivo pela emissora de TV alemã-oriental, o porta-voz do partido comunista, Gunther Schabowski, surpreende a todos e anuncia uma lei que permite aos cidadãos viajar para a Alemanha Ocidental livremente. A lei começava a vigorar, segundo ele, imediatamente.
19h05 - Governo em xeque
A declaração de Schabowski coloca o governo num beco sem saída e antecipa os planos de abrir as fronteiras. Na verdade, Schabowski havia acabadode chegar de viagem e recebeu a missão de anunciar a lei poucos minutos antes da coletiva. Não estava seguro sobre os detalhes práticos e, pressionado, falou de improviso.
19h10 - Marcha ao muro
 

A Grande Muralha da China

Obra é uma das sete maravilhas modernas

 
Durante 1 900 anos, os chineses ergueram muros para se proteger dos povos do norte. As primeiras barreiras surgiram antes da unificação do império, em 221 a.C. Ao transformar sete reinos em um país, o imperador Qin Shihuangdi (259-210 a.C.) começou a unificar a muralha, ampliada nas dinastias seguintes. As técnicas foram evoluindo, e o muro, que a princípio era feito de barro, também foi erguido com tijolos. A Grande Muralha atingiu o auge no século 15. Mas, a partir de 1664, quando os manchus expandiram o território da China na direção norte, a obra perdeu utilidade. Em 1677, uma ordem do imperador Kangxi (1654-1722) pôs fim à longa saga de construções e reformas da mais incrível estrutura militar do mundo.

A construção

Lavradores pobres manuseavam a tecnologia de ponta da época
Trabalho duro
A Grande Muralha foi construída por milhares de camponeses que, em troca do trabalho, eram liberados do pagamento de impostos. Há registros que dizem que, por causa da má alimentação e do frio, até 80% dos operários morriam trabalhando.
Tijolos em carroças
Além de ampliar a barreira, a dinastia Ming (1368-1644) criou tijolos resistentes, feitos de barro aquecido a 1 150 ºC. Saindo dos fornos, que ficavam a até 80 quilômetros do muro, eles eram levados em carroças. Já a argamassa era feita com barro e farinha de arroz.

A guerra

Depois de terminado, o muro servia para repelir invasões
Fumaça de esterco
A comunicação entre as torres era feita com sinais de fumaça preta. No auge da muralha, o combustível mais usado era esterco misturado com palha. Na falta desse material, os soldados improvisavam com bandeirinhas pretas ou brancas.
Depósito e abrigo
As torres serviam como depósito de mantimentos, abrigo para até 50 militares e base para observação de movimentos inimigos. A distância entre elas variava, mas seguia um critério: cada torre tinha que visualizar os sinais emitidos pela vizinha.
Passarelas militares
As torres eram ligadas por passarelas de 6 metros de largura, grandes o suficiente para permitir a rápida movimentação das tropas em caso de ataques dos inimigos. A defesa contra os invasores também era feita a partir desse local privilegiado.
Vitórias e derrotas
A Grande Muralha foi posta à prova diversas vezes. Ela salvou a China em 1482, quando os mongóis ficaram presos contra as fortificações. Mas, em 1211, Gêngis Khan (1162-1227) venceu os chineses que se defendiam na área leste da construção
A notícia da abertura da fronteira se espalha rapidamente e a cidade entra em euforia. Depois de 28 anos sem poder passar para o lado ocidental, as pessoas saem de suas casas para ver de perto a abertura dos portões. Cerca de 1 milhão de cidadãos se reúnem no lado oriental da fronteira.
20h - Ruas tomadas
As ruas estão tomadas, sobretudo o centro de Berlim, com 500 mil pessoas diante do muro. De todo lado chega mais gente, a pé ou a bordo dos Trabants e Watburgs – carros de produção local, únicos que os alemães-orientais podiam adquirir –, de Berlim ou de outras cidades, como Leipzig. O governo ainda não sabe o que fazer.
22h15 - Portas abertas
Diante da multidão querendo passar, os policiais abrem os portões. Além dos policiais, havia 20 fiscais em cada posto. O portão de Bornholmer Strasse, no subúrbio, abre primeiro. Depois, o de Brandemburgo, no centro da cidade.
23h - O muro é nosso
O muro está tomado. Alemães-ocidentais e orientais festejam. As pessoas sobem e dançam em cima do muro. Começam a se formar filas de carros para atravessar a fronteira, que chegam a mais de 100 quilômetros. A passagem só é permitida na manhã do dia seguinte, quando mais de 2 milhões de cidadãos do Oriente passam pela fronteira.
23h45 - Picaretada
Alemães tentam destruir o muro com picaretas e outras ferramentas. O gesto é apenas simbólico. Em 13 de junho de 1990, o governo manda 300 soldados, que levam seis meses para derrubar o muro. Em 3 de outubro, o chanceler Helmut Kohl decreta a reunificação da Alemanha.

Peste, fome, tecnologia: a morte negra


 

Em outubro de 1347, uma passageira clandestina chegou ao porto de Messina, na Sicília, Itália, escondida nos navios de uma frota genovesa vinda da Criméia (onde hoje fica a Ucrânia). Seu nome era Pasteurella pestis, uma bactéria que matava em pouco tempo e que se espalhou rapidamente. A doença que ela provocava logo levou a uma pandemia e recebeu o nome de Peste Negra. A conseqüência de sua entrada na Europa foi simplesmente devastadora: a morte de cerca de 34 milhões de pessoas, ou seja, um terço da população do continente.
Naquele verão, em Florença, cadáveres empilhavam-se nas portas das casas e nas ruas e o cenário de desespero não demorou a se espalhar pelo resto da Itália, França, Portugal, Espanha, Inglaterra, Egito, Síria, Palestina, Alemanha e por último a Rússia, por volta de 1351. Nas axilas e virilhas dos contaminados, surgiam protuberâncias (os bubos) do tamanho de um punho, seguidas do aparecimento de manchas negras pela pele. Dos corpos saía um odor repugnante, e nenhum dos tratamentos populares da época, como a sangria e as poções de ervas, tinha utilidade. A morte chegava entre quatro e sete dias após o início dos sintomas e atingia suas vítimas por meio das pulgas dos roedores – havia muitos insetos e ratos nas casas de camponeses e castelos, com poucas condições de higiene (na época, lavar com sabão ainda era um hábito caro). A população, contudo, acreditava que a doença transmitia-se pela respiração e, para afastar o “ar ruim”, os médicos recomendavam que se queimasse madeira perfumada com almíscar ou louro e que o chão fosse borrifado com vinagre e água de rosas. “Não havia ninguém para enterrar os mortos, fosse por dinheiro ou amizade”, disse o italiano Adnolo di Tura em um texto que escreveu sobre a doença em 1348 depois de enterrar os cinco filhos, vítimas do mal. As origens do surto de peste no século 14 são controversas. A teoria mais aceita cita as estepes na Ásia central e no norte da Índia como os pontos focais. Dali, o mal se espalhou até a China e, mais tarde, para toda a Europa. Ratos e pulgas infectados nos navios, com comerciantes e exércitos mongóis que transitavam pela Rota da Seda, levaram a peste para os portos europeus.
A fome como inimigo
Quando não era a peste, a fome fazia milhares de vítimas na Idade Média. Entre 1315 e 1317, a Europa teve a pior produção de alimentos de sua história. Os campos sofreram diversos alagamentos e as plantações não estavam suficientemente maduras quando colhidas, dificultando a estocagem. Como se não bastasse a má qualidade da comida disponível, no início de 1316 o inverno rigoroso dizimou as colheitas. Os preços do trigo triplicaram e o pão passou a ser misturado a excrementos de pombos e de porcos, cascas de árvores, palhas e caules de ervilha. Não havia o que comer nem para a minoria da população que possuía dinheiro. Em algumas regiões, cerca de 70% dos rebanhos morreram de doenças causadas pela desnutrição e, mesmo assim, foram comidos, levando à disseminação de pestes. A fome levou ao canibalismo – registrado desde o interior da Inglaterra até a Livônia (atual Estônia). Entre 1594 e 1597, uma sucessão de quatro safras ruins trouxe mais desespero e morte. Cerca de 10% da população francesa morreu faminta. O problema afetaria a Europa até o início do século 18.
Templo do saber
Com a fundação das primeiras escolas por Carlos Magno no século 7, a cultura greco-romana, até então guardada nos mosteiros, voltou a ser divulgada. Apenas no século 11, porém, é que a primeira universidade para o estudo do direito, da medicina e da teologia surgiu em Salerno, na Itália, com base nas escolas episcopais. Organizadas pela Igreja, contavam com professores de duas ordens religiosas: os dominicanos (dedicados mais à ciência e ao pensamento aristotélico) e os franciscanos (cuja influência era fundamentada nos ensinamentos de santo Agostinho). A partir dessas universidades é que se desenvolveu a escolástica: uma linha dentro da filosofia medieval que procurou conciliar os ensinamentos da doutrina cristã com o platonismo e o aristotelismo.
Acertando os ponteiros
O primeiro relógio mecânico foi construído em 850 por Pacífico, arcebispo de Verona. Consistia em um conjunto de engrenagens movido por pesos. Até o fim do século 13, porém, o dispositivo só foi utilizado em igrejas ou em pequenas torres públicas. O mais antigo deles instalado é de 1309, na Igreja de Santo Eustórgio, em Milão, Itália. Em 1410, o arquiteto florentino Fillipo Brunelleschi construiu relógios que usavam uma mola em espiral. Serviram de modelo para que o serralheiro alemão Peter Henlein aperfeiçoasse o invento em 1510, o que possibilitou o surgimento dos primeiros relógios mecânicos portáteis, fabricados na Inglaterra, França e Suíça.
O multiplicador de livros
Johannes Gutenberg inventou a prensa de metais móveis, em 1438, na cidade de Estrasburgo (hoje na França), e revolucionou a tipografia mundial. Embora a tecnologia já fosse conhecida na China desde o século 11, os tipos móveis chineses não suportavam um longo uso e mal retinham a tinta da impressão. O trabalho de Gutenberg foi aperfeiçoar os blocos de impressão já existentes na Europa e desenvolver novos modelos de caracteres feitos de metal. Também criou uma tinta de impressão à base de óleo e prensas feitas das peças utilizadas para espremer as uvas na fabricação de vinho. O processo logo se espalhou por todo continente, em 50 anos, as obras existentes, que não passavam de centenas, se transformaram em milhares.

A força da água

A primeira vez em que a água foi utilizada como força motriz aconteceu num moinho de grãos horizontal, criado no Egito por volta de 100 a.C. Anos depois, com a invenção das primeiras engrenagens, optou-se pelos moinhos verticais, que chegaram à Europa gradativamente. A primeira evidência em grande escala dessas engenhocas vem da Inglaterra, em 1086, quando foram registrados 5 624 moinhos de água no país. Naquele ano, os moinhos foram pela primeira vez usados para a fiação de tecidos. Isso transformou a indústria de lã inglesa, aumentando sua produção. Eles também foram aproveitados para o escurecimento do couro e, em 1238, para a fabricação de papel. Os moinhos também forjaram o ferro, ajudaram a serrar madeira e a fazer malte para a cerveja. Por causa da importância na economia e da redução no tempo de serviço dos trabalhadores, os moinhos de água produziram uma espécie de “revolução industrial” na Europa a partir do século 11.

Os dois sábios medievais

A Idade Média teve dois grandes filósofos: são Tomás de Aquino e Roger Bacon. Frade dominicano, são Tomás nasceu em 1227, na Itália, e foi responsável pela introdução das obras de Aristóteles na Igreja. “Para Tomás, o ser humano possui uma alma única, unida ao corpo intrinsecamente”, diz Carlos Arthur do Nascimento, professor de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sua obra mais importante é a Suma Teológica, em que revê a teologia cristã sob o princípio aristotélico de que cabe à razão classificar o mundo para entendê-lo. Já Roger Bacon foi um padre franciscano, nascido na Inglaterra em 1214, que ficou conhecido como Doctor Mirabilis por ser o precursor do espírito científico no pensamento moderno. “Estudioso da óptica, a principal importância de Bacon para a filosofia está em sua defesa da matemática para a fundamentação da ciência natural”, afirma o professor da PUC/SP.

Mochicas: a história do povo que habitou o Peru antes dos Incas


Muito antes dos incas, um misterioso povo dominou a costa norte do Peru. O pouco que se sabe sobre ele deve-se a alguns sítios e à incrível cerâmica (muitas com motivo erótico) achados por arqueólogos


 

Os guerreiros sabiam que ao chegar à cidade, após mais uma conquista, seriam recepcionados com uma festa preparada por membros da elite. Ornamentados com plumas e pinturas no corpo, levantaram suas armas, maças de madeira ou metal, nas quais penduraram armas e adornos dos inimigos combatidos. À frente deles, alguns dos próprios derrotados caminhavam, desarmados, nus e atados pelo pescoço por uma corda. Ao entrar no centro cerimonial, os vitoriosos foram recebidos pelos integrantes da elite, que, de mãos dadas e usando seus melhores enfeites, se dispuseram ao lado do caminho percorrido pelos guerreiros, dançando para recepcioná-los. A cena aparece em um mural em relevo de Huaca de la Luna, na costa norte do Peru - feito, muito provavelmente, em comemoração a alguma vitória do povo que habitava esse local sobre uma etnia vizinha. Eles eram os mochicas, uma das mais antigas civilizações da América do Sul.

Esse povo, que desapareceu mil anos antes de os incas dominarem os arredores andinos, deixou para trás poucas pistas de sua existência. Por isso é tão difícil determinar, de fato, quem foram, como viviam e como sumiram. "Os incas têm narrativas sobre povos que dominaram ou incorporaram. Mas os mochicas vieram tanto tempo antes que não estão nessas narrativas", afirma o historiador Eduardo Natalino dos Santos, da USP, especialista em povos pré-colombianos.

A costa peruana é um lugar completamente árido, repleto de dunas. Assim, acredita-se que esse povo foi capaz de dominar o deserto - se bem que as coisas podem não ter sido tão difíceis assim. "O rio Moche e outros rios da região têm um afluxo de água constante do degelo dos Andes. A costa, em termos de pesca e coleta, é uma das mais ricas do mundo", diz Santos. Os mochicas, porém, deram sua contribuição: com um sistema sofisticado de canais e dutos, irrigaram o deserto para não depender do regime de chuvas. E o mar garantia a oferta de peixes e algas, a base da alimentação.

Os mochicas viveram entre os séculos 100 a.C. e 600 d.C., aproximadamente, quando desapareceram ou acabaram absorvidos por outras culturas. Foram os primeiros a erigir na região uma arquitetura monumental, com pirâmides imensas. O que hoje chamamos de moche era, na realidade, um mosaico de grupos autônomos que compartilhavam tradições. "Não existia uma política unificada, mas pelo menos duas instituições políticas independentes", afirma a historiadora Cristiana Bertazoni, do Centro de Estudos Andinos e Mesoamericanos da USP. Uma delas estava localizada nos vales de Moche e Chicama. A segunda, nos vales de Lambayeque e Jequetepeque. Todas estão na costa norte peruana, mas convencionou-se chamar os grupos de, respectivamente, mochicas do sul e do norte. "Enquanto os do norte limitavam-se à sua área tradicional, os demais iniciaram uma política expansionista, principalmente em direção ao sul. Mas ambos compartilhavam similaridades políticas, cerimoniais, funerárias, artísticas e rituais."

Como não tinham escrita, eles relatavam o cotidiano e a mitologia em murais e peças de cerâmica. A secura do deserto contribuiu para a preservação dos objetos, que permitem afirmar com certeza algumas poucas coisas sobre o passado esquecido dessa população. "Era uma sociedade hierarquizada, de elites expansionistas, que fazia capturas, decapitações e guerras", diz Santos. "Redes políticas absorviam outras cidades, formando grandes confederações. A cerâmica mochica se espalha por uma região bastante ampla. Era objeto de comercialização e influência, exportada e copiada em outras localidades. Assim, sabemos que houve uma expansão mochica, combinando trocas comerciais e ações bélicas, que abrangeu uma grande região (veja o mapa à esq.) e depois entrou em decadência."

Os governantes eram considerados semideuses. Quando havia cerimônias, os servos espalhavam sulfato de mercúrio no chão para que não pisassem diretamente no solo. Sempre acompanhado de um militar (que ia com ele até para a tumba), o monarca portava uma coroa, o cetro do poder e uma narigueira de ouro. A sociedade era extremamente hierarquizada - pinturas corporais representavam o estado social e o clã do indivíduo. Abaixo do rei, encontravam-se os sacerdotes e depois os chefes militares, os nobres, os artesãos e os pescadores, sucessivamente.

Um cetro de madeira de 5 kg, recoberto com cobre, era a principal arma (por causa dele, abundam crânios com fraturas profundas nos jazigos locais). Desde a infância, os guerreiros eram iniciados em ritos decisivos para seu futuro. Uma corrida marcava a chegada da maturidade. O vencedor passava era incorporado à guarda pessoal do governante.

A cerâmica com estilo mochica foi incorporada, entre outros povos, pelos incas. As mais famosas são as que reproduzem o ato sexual e os objetos fálicos, que suscitam todo tipo de interpretação - como a de que os mochicas celebravam, por meio do artesatano, o milagre da vida. Mas isso é apenas uma suspeita.

Clique na imagem para ampliar (Design: Glenda Capdeville - Ilustração: Kleber Sales)

Sacrifícios e fim

Os mochicas praticavam sacrifícios humanos. Nos rituais, virgens atiravam-se no abismo sob o efeito de um cacto alucinógeno conhecido hoje por "são pedro". Os prisioneiros de guerra eram as vítimas preferenciais do decapitador, que aparece desenhado em muitas vasilhas e era um semideus. Sacrifícios (com direito a goles de sangue do escolhido) podem ser explicados de forma simples entre os mochicas. Como ocorreu em toda a América pré-hispânica, são mecanismos de coerção e poder. Serviam para que a elite garantisse sua hegemonia. Na cultura mochica, os rituais também eram úteis para agradar aos deuses e manter o equilíbrio do mundo.
Só que o mundo mochica começou a ruir por volta do ano 500. Nunca se soube bem por que até 1955, quando o arqueólogo Steve Bourget encontrou na Huaca de la Luna milhares de ossos enterrados no lodo. Ele percebeu, em função do lodo, que ocorreram sacrifícios em época de chuva abundante. Mas a chuva, até hoje, é coisa rara no litoral. A pista para desvendar o mistério veio dos Andes. Por meio da observação de glaciares, constatou-se que a costa sofreu, entre 560 e 650, uma mudança climática atroz causada por um fenômeno que até hoje assola o continente americano: o El Niño. Foram 30 anos de inundação na costa, seguidos de 30 anos de seca. E, aparentemente, mais 30 anos de guerra civil em virtude dos recursos escassos. Ninguém mais queria ser sacrificado, duvidando da eficiência dos rituais. Os deuses deram provas em demasia de uma ira que parecia não terminar jamais. Até uma sociedade moderna teria sucumbido.

As 10 pessoas que mudaram o mundo - E o que seria da humanidade sem elas


Historiadores, escritores, jornalistas, eleitores escolheram dez personalidades cuja ação ajudou a determinar a forma como a sociedade se comporta hoje


 

Da hora em que você acorda até o momento de voltar para a cama, seu cotidiano se compõe de uma série de atitudes e comportamentos que parecem naturais. Pois não são. O que você é no seu dia a dia é fruto de uma série de aprendizados sociais que moldaram a evolução humana desde que nosso primeiro antepassado resolveu descer da segurança de uma árvore e se arriscar na savana africana. Muito do que somos foi moldado por outros seres humanos ao longo da História.

Para comemorar o aniversário de dez anos, AVENTURAS NA HISTÓRIA resolveu descobrir quem foram os personagens que mais contribuíram para o mundo contemporâneo. Para isso, os jornalistas Fábio Marton e Wagner Gutierrez Barreira pediram a especialistas brasileiros e do exterior que montassem uma lista com as pessoas que, em sua opinião, ajudaram a dar a cara do mundo ocidental nos dias de hoje. Em paralelo, as áreas digital e de atendimento da revista lançaram uma pesquisa em que os leitores elegeram seu próprio ranking. Em poucos dias, 1 310 pessoas contribuíram com sua preciosa opinião.

A lista, claro, será considerada incompleta por muita gente. E é mesmo difícil satisfazer a todos. Há algumas curiosidades. Quatro personalidades elencadas são judeus - e o homem que tentou acabar com os judeus no mundo, Adolf Hitler, também está na lista. E quatro entre as dez pessoas mais votadas são associadas ao comunismo, uma ideologia que entrou em colapso no final do século 20.

Certos resultados foram surpreendentes. Empatado com Charles Darwin, Sigmund Freud foi o segundo mais votado pelos especialistas, perdendo apenas para Karl Marx. Brasileiros (não há nenhum entre os vencedores) foram mencionados por estrangeiros, como o historiador britânico Kenneth Maxwell, que indicou José Bonifácio de Andrada e Silva, "a figura crítica na conquista da independência do Brasil". O jornalista e escritor Laurentino Gomes citou o português dom João VI, "um herói às avessas, que transformou o pedacinho do mundo que hoje conhecemos como Brasil". Jesus Cristo foi o favorito dos leitores, mas teve poucos votos entre os especialistas. As escolhas do leitor serviram de critério de desempate, confirmando Jesus e Albert Einstein entre os finalistas.

A lista, não custa ressaltar, não trata dos "dez heróis" ou das "dez pessoas que ajudaram a fazer deste um mundo melhor". Genocidas como Josef Stalin, Mao Tsé-tung e Adolf Hitler tiveram contribuições ao planeta, mesmo sem ter intenção. Nosso mundo também é fruto do que se tenta evitar - e do esforço para que tragédias não se repitam.

Os eleitores
Pedro Paulo Funari

Arqueólogo, professor livre-docente da Unicamp, autor de A Vida Quotidiana na Roma Antiga
Buda

Confúcio

Gilberto Freyre

Jesus

John S. Mill

Maomé

Karl Marx

Platão

Sigmund Freud

Simone de Beauvoir
Leandro Narloch

Jornalista, ex-editor de AVENTURAS NA HISTÓRIA, autor de Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil

Adam Smith

Charles Darwin

Fritz Haber

Gavrilo Princip

Galileu Galilei

LEnin

Louis Pasteur

M. Lutero

Paulo de Tarso

Rousseau
Richard Overy

Historiador britânico, professor da Universidade de Exeter, autor de Os Ditadores - A Rússia de Stalin e a Alemanha de Hitler
Albert Einstein

Charles Darwin

George Stephenson

Henry Ford

John S. Mill

Karl Marx

Mahatma Gandhi

Pablo Picasso

Virginia Woolf

Sigmund Freud
Laurentino Gomes

Jornalista e escritor, autor do best-seller 1808, ganhador do Prêmio Jabuti 2008 nas categorias reportagem e não ficção

Albert Einstein

Charles Darwin

Dom João VI

Galileu Galilei

Johannes Gutenberg

M. Lutero

Napoleão Bonaparte

Paulo de Tarso

Sigmund Freud
João Pereira Coutinho

Historiador e jornalista português, professor convidado da Universidade Católica Portuguesa, colunista do jornal Folha de S.Paulo
Adolf Hitler

Charles Darwin

Friedrich Nietzsche

Karl Marx

Mao Tsé-Tung

Mary Wollstonecraft

Sayd Qutb

Sigmund Freud

Stalin

Theodor HerzL
Jon Lee Anderson

Escritor norte-americano, repórter investigativo, autor de Che Guevara: Uma Biografia e A Queda de Bagdá

Abraham Lincoln

Aiatolá Khomeini

Adolf Hitler

Fidel Castro

George W. Bush

Harry Truman

Stalin

Mao Tsé-Tung

NElson Mandela

Teddy Roosevelt
Kenneth Maxwell

Historiador britânico, diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Harvard
Aristóteles

Benjamin Franklin

Cristóvão Colombo

Jesus

J. B. Andrada e Silva

N. Mandela

Mahatma Gandhi

Maomé

Martin Luther King

Zheng He
Marco Antônio Villa

Historiador, professor da Universidade Federal de São Carlos, autor de A História das Constituições Brasileiras


Adam Smith

Abraham Lincoln

Adolf Hitler

F. D. Roosevelt

Karl Marx

Lenin

Mao Tsé-Tung

M. Gorbachev

Winston Churchill

Stalin
Lincoln Ferreira Secco

Historiador, professor da Universidade de São Paulo (USP), doutor em História Econômica, autor de Leitura e Difusão de O Capital de Karl Marx
Karl Marx

Napoleão Bonaparte

Mao Tsé-Tung

Adolf Hitler

C. Clausewitz

Vo Nguyen Giap

Stalin

Lenin
Francisco Cabral Alambert Junior

Historiador, professor da USP, membro do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico

Charles Darwin

Hobsbawn

Pablo Picasso

Karl Marx

Abraham Lincoln

Adolf Hitler

O Socialismo


CURRÍCULO

Nome: Jeshua ben Joseph

Nascimento: cerca de 7 a 4 a.C., Nazaré, Galileia

Morte: c. 30-36, Jerusalém

Ocupação: Aprendiz de carpinteiro, profeta, mártir, fundador do cristianismo

Jesus Cristo

Fundador da maior religião do mundo e de boa parte da história ocidental


De certa forma, nenhum outro personagem desta lista existiria sem ele. É quase impossível imaginar a história do mundo ocidental sem Jesus Cristo, com séculos de pensamento dedicados a conciliar a filosofia e hábitos pagãos com o monoteísmo importado da Judeia. "Seus seguidores continuam a ser os mais numerosos no mundo, o calendário é baseado nele e constitui o elo entre o judaísmo e o helenismo", afirma o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Ainda que a civilização cristã raramente tenha conseguido viver pelas palavras de Jesus de amar ao próximo, não julgar para não ser julgado e dar a outra face, a Igreja fundada em seu nome é absolutamente central na História do Ocidente. Tanto que o calendário se divide em antes e depois de Cristo.

Países como Alemanha, França e Espanha só existem porque reis bárbaros se converteram ao cristianismo e ganharam legitimidade após a queda do Império Romano. As Cruzadas introduziram o gosto por especiarias aos europeus, e isso é tanto a origem das Grandes Navegações, na Península Ibérica, quanto do capitalismo que bancou a Renascença, na Itália. Foi a Igreja que fundou as primeiras universidades, e dela saíram vários pensadores que retomaram a filosofia clássica, como Santo Agostinho, Roger Bacon e São Tomás de Aquino. A Reforma Protestante comandada pelo alemão Martinho Lutero liberou o homem para acumular riqueza sem culpa, uma das causas da Revolução Industrial. É um assunto controverso, mas vários pensadores, como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, relacionaram o cristianismo aos ideais igualitários modernos da democracia e do socialismo.

O personagem mais importante para a história do Ocidente é aquele sobre o qual menos se sabe. Nem uma linha foi escrita sobre Jesus enquanto ele viveu. Autores não cristãos que trataram dele, Tácito e Flávio Josefo, só apareceram décadas após sua morte - e suspeita-se que monges medievais piratearam trechos sobre Jesus nos originais. Quase 2 mil anos depois, a maior fonte sobre sua vida continuam a ser os Evangelhos, que não são livros de História, mas de pregação religiosa.

A busca pelo Jesus histórico é limitada. Pesquisadores costumam comparar os Evangelhos com fatos conhecidos de seu tempo. Por exemplo, como não existe nenhum registro de um censo na Judeia na época de seu nascimento, a maioria dos historiadores acredita que ele nasceu mesmo em Nazaré, não em Belém (fato usado para identificá-lo à estirpe do rei Davi), e isso foi no máximo em 4 a.C., no fim do reino de Herodes, o Grande. Portanto, nosso calendário carrega um erro de cálculo.

Mas alguns fatos bíblicos são amplamente aceitos: Jesus existiu, foi batizado por João Batista e crucificado por Pôncio Pilatos, após um incidente no Templo de Jerusalém. E a religião que fundou já havia chegado à capital do Império Romano no reino de Nero (54-68), décadas depois de sua morte. O que quer que Jesus tenha dito ou feito em vida, o cristianismo não existiria apenas com ele. Paulo de Tarso, que nunca o encontrou em pessoa (teve uma visão), foi quem abriu a religião a todos.

A conversão do imperador Constantino, em 312, tornou o cristianismo a maior religião do mundo, com 2,2 bilhões de fiéis hoje.

O mundo sem ele

Sem Jesus Cristo e o cristianismo, não haveria uma Igreja unificada e forte para preservar o pensamento e conhecimento da Antiguidade durante a Idade Média, nem para avalizar autoridade a imperadores como Carlos Magno (742-814), que começou a impor ordem à Europa. O mundo "ocidental" seria mais voltado ao Oriente, no que restou do Império Romano, da Grécia ao Norte da África. Sem cristãos não haveria o Islã. Maomé derivou um conteúdo considerável de sua doutrina do cristianismo. Jesus era um dos profetas maiores. Em uma Europa bárbara não haveria Renascença, Grandes Navegações ou Revolução Industrial. Talvez outra civilização fosse dominante, como os persas ou indianos. A tecnologia estaria alguns séculos atrasada.



CURRÍCULO

Nome: Karl Heinrich Marx

Nascimento: Trier, Prússia, 5 de maio de 1818

Morte: 14 de março de 1883, Londres, Reino Unido

Ocupação: Filósofo, economista e jornalista
Karl Marx

O Filósofo rebelde que foi à luta pelo socialismo


Marx partiu de uma filosofia para filósofos - o idealismo de Hegel - para uma filosofia de ação. "Os filósofos apenas tentaram interpretar o mundo de diversas formas; o ponto é mudá-lo", escreveu em 1845. E ele mudou mesmo: o século 20 foi marcado pela divisão mundial entre marxistas e defensores do capitalismo de várias vertentes. Como sistema político, a democracia ocidental venceu em 1991 com a queda da União Soviética, um pesadelo totalitário em que ninguém poderia vislumbrar o comunismo prometido por Marx, uma sociedade sem classes, Estado ou opressão. Mas muitos pensadores contemporâneos, como os filósofos Slavoj Zizek e Antonio Negri, e o falecido historiador Eric Hobsbawn, afirmam que ainda é cedo para decretar a morte do marxismo como ideologia. Marx afirmou no século 19 que crises cíclicas eram inerentes ao capitalismo - e o crash de 2008, último de uma série, mostra que essa foi uma previsão certeira. "Sua crença de que a justiça social deveria ser uma razão fundamental de todas as comunidades modernas nem sempre foi bem-sucedida, menos ainda em todas as ditaduras comunistas, mas sua influência foi mundial e contínua", diz o historiador britânico Richard Overy.

No que ele mesmo chamava de praxis, os conceitos de Marx mudaram a geopolítica do planeta. Mas ele também tem uma enorme contribuição acadêmica, o que garante a permanência de seu pensamento como norte intelectual ainda hoje nas ciências humanas. Marx ajudou a criar caminhos intelectuais, como a lógica dialética e o materialismo histórico, que dominariam várias áreas do conhecimento no século 20. Ele é um dos fundadores das ciências sociais, o saber que transformou a mera especulação filosófica em estudo metódico, baseado em conceitos científicos. Vale lembrar que sua teoria é um convite à ação. "Marx criou as bases da mais profunda crítica do capitalismo e lançou ideias para sua superação histórica", afirma o historiador Francisco Alambert, da USP.

Em sua vida pessoal, Marx foi um grande ativista das causas que defendia. Em 1864, fundou e dirigiu a Primeira Internacional, organização mundial de comunistas, anarquistas e sindicalistas. Escreveu e editou jornais revolucionários e tinha colunas em diários convencionais, como o New York Daily Tribune, no qual defendeu o fim da escravidão nos EUA. Tal como Albert Einstein, foi nas horas vagas que escreveu sua obra-prima, O Capital, publicado em 1867. Também misturou a vida familiar com a política - sua filha Laura casou-se com o socialista francês Paul Lafargue, famoso por comandar jornadas em defesa de 8 horas diárias de trabalho em Paris.

Perseguido pelas autoridades europeias, vivendo quase sempre à beira da insolvência (e costumeiramente socorrido financeiramente pelo amigo e parceiro intelectual Frederick Engels), teve sete filhos com a baronesa Jenny von West-phallen. Apenas três sobreviveram até a idade adulta. Quando morreu, Karl Marx era ao mesmo tempo uma celebridade internacional e um apátrida. De certa forma, ele foi o primeiro mártir do marxismo. Sua tumba, em Londres, hoje é ponto turístico da cidade.

O mundo sem ele

O socialismo preconizado por Marx, adotado por sindicatos e partidos de esquerda, foi responsável por diversas conquistas dos trabalhadores, como a jornada de 8 horas, as férias anuais e as leis contra o trabalho infantil. A crítica sistemática da sociedade capitalista iniciada por Marx serviu de base intelectual para movimentos que não têm relação direta com a causa do proletariado, como o feminismo e a luta por direitos civis de negros e gays. Sem Marx, não haveria as tragédias do comunismo soviético e chinês, mas também viveríamos num mundo mais conservador, onde o nacionalismo, na ausência das grandes ideologias, seria um fator importante a dividir os países. "Sem Marx, o materialismo e a luta de classes demorariam a surgir", afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. "Não entenderíamos a força e a violência do capital", diz Francisco Alambert, da USP. Possivelmente não existiriam instituições como a Comunidade Europeia sem a Guerra Fria para unir os europeus ocidentais.


CURRÍCULO

Nome: Sigmund Freud (Sigismund Schlomo Freud)

Nascimento: 6 de maio de 1856, Freiberg in Mähren, Império Austro-Húngaro (hoje P¿ríbor, República Checa)

Morte: 23 de setembro de 1939, Londres, Reino Unido

Ocupação: Psiquiatra e fundador da psicanálise

Sigmund Freud

Austríaco mudou a imagem que o ser humano tem de si mesmo

À primeira vista, o pai da psicanálise é um personagem destoante nesta lista. Não foram feitas revoluções em seu nome e sua contribuição científica é controversa. Entre seus muitos críticos, Karl Popper, possivelmente o maior filósofo da ciência do século 20, simplesmente excluiu a psicanálise do domínio científico. O complexo de Édipo foi rejeitado por antropólogos, que não confirmaram algo parecido em outras culturas pelo mundo. E, para Freud, o tal complexo era a razão de ser de sua teoria. "No complexo de Édipo reúnem-se os começos da religião, moralidade, sociedade e arte, em plena concordância com a verificação psicanalítica de que esse complexo forma o núcleo de todas as neuroses", escreveu ele em Totem e Tabu.

Mas entre todos os mencionados, Freud é provavelmente o que tem a maior influência no cotidiano das pessoas hoje em dia. Para o professor da Unicamp Pedro Paulo Funari, ele "introduziu a vida interior ou psíquica no centro da maneira como as pessoas entendem e se entendem no mundo". A ideia do que é ser humano foi refundada por Freud. Antes, havia duas concepções principais: o homem cartesiano, uma mente perfeitamente livre e racional, independente do corpo e suas vicissitudes. Ou o Homo economicus, uma máquina de calcular que sempre agia para maximizar resultados e ganhar dinheiro, uma tradição que vai de Adam Smith até Karl Marx. Hoje, cientistas e psicólogos entendem o ser humano como um animal dotado de razão, mas uma razão imperfeita, altamente influenciada por seus desejos e sentimentos, às vezes inconscientes, às vezes inconfessáveis, atormentado pela contradição entre esses impulsos e a vida em sociedade. Ideia surgida com a psicanálise que ciências mais duras, como a neuropsiquiatria e a psicologia evolutiva, só têm reforçado. Alguns conceitos freudianos, como o inconsciente e a razão deturpada pelos desejos, são amplamente aceitos por neurocientistas. Existe, assim, uma revolução freudiana, no "estudo da mente humana, demonstrando que traumas, sonhos, desejos e fantasias têm impacto decisivo no comportamento das pessoas", de acordo com o jornalista e escritor Laurentino Gomes.

Formado em Medicina em 1881, Freud começou a trabalhar como psiquiatra científico, estudando a anatomia do cérebro. Em 1885, na França, teve sua primeira revelação: muitas condições físicas nos pacientes eram causadas por transtornos da mente. De volta à Áustria, tomou contato com Josef Breuer, que descreveu como uma paciente havia melhorado apenas por meio de conversa, caso que interessou vivamente a Freud. Pela mesma época, recomendou ao colega psiquiatra Ernst von Fleischl-Marxow o "antidepressivo" da época, a cocaína. Marxow morreu de overdose em 1891. Esses eventos o levaram a abandonar as drogas e a hipnose para adotar a cura pela conversa, que batizou de psicanálise em 1896. Em 1899, lançou o livro fundador da teoria, A Interpretação dos Sonhos.

Freud refinaria e ampliaria suas concepções até o fim da carreira, ganhando discípulos e tornando a psicanálise uma das terapias mais populares da psicologia do século 20. A nova ideia do ser humano teve imensas ramificações nas artes, cultura e filosofia. Surrealismo, dadaísmo, pós-modernismo - tudo isso nasceu das ideias de Freud.

O mundo sem ele
Paradoxalmente para esse conservador convicto, que considerava o orgasmo pelo clitóris ou qualquer forma de sexo não reprodutivo como falhas no desenvolvimento mental, o mundo seria bem mais "careta" sem ele. Suas teorias influenciaram a arte e o pensamento de vanguarda. A explicação naturalista para o sexo, incluindo a sexualidade na infância, abriu caminho para a revolução sexual, iniciada justamente pelos artistas e pensadores de vanguarda. A filosofia pós-moderna, a rejeição do mundo racional e científico contemporâneo, começa pela dúvida freudiana de uma razão pura. Enfim, sem o austríaco, não haveria os anos 60. O mundo não teria subculturas, mas uma divisão baseada puramente em ideias, entre respeitáveis senhores de paletó e gravata.


CURRÍCULO

Nome: Charles Robert Darwin

Nascimento: 12 de fevereiro de 1809, Shrewsbury, Inglaterra

Morte: 19 de abril de 1882, Londres, Inglaterra

Ocupação: Geólogo e biólogo

Charles Darwin

O cientista que mudou a história do homem com a seleção natural


Em 1859, um livro colocou o ser humano em seu devido lugar. Antes dele, a humanidade tomava a si própria como o ápice da criação, num mundo em que todas as outras formas de vida haviam sido colocadas na Terra por Deus apenas para servi-la. A Origem das Espécies demoliu essa visão milenar. "Sua influência no desenvolvimento de áreas críticas da ciência foi profundo. Ao mesmo tempo, ajudou a construir uma nova visão científica do mundo, substituindo a visão cristã prevalente", afirma o historiador e autor britânico Richard Overy.

Darwin afirmou que a espécie humana evoluiu, como todas as outras, por meio de um processo que não tem direção definida, com todos os animais partilhando um ancestral comum. É a sobrevivência do mais apto - não a do mais forte - às circunstâncias que guia a evolução. A espécie humana não foi feita à imagem e semelhança de Deus, mas surgiu de um macaco na savana africana. Esse foi um impacto brutal na autoimagem da humanidade, que até hoje muitos ainda relutam em aceitar. Ainda mais em uma sociedade conservadora como a Grã-Bretanha do século 19.

Pelos diários de Darwin, sabe-se que ele já havia chegado a essas conclusões 20 anos antes. Mas temia publicá-las, porque podia prever as consequências na cultura da Inglaterra vitoriana. Aos 50 anos, tinha muito a perder, numa admirável carreira que havia rendido a medalha da Royal Society, a academia britânica de ciências, em 1853. " Não sei o que pensar: realmente detesto a ideia de escrever por prioridade, mesmo assim ficaria irritado se qualquer um publicasse as minhas teorias antes de mim", escreveu alguns anos antes da publicação. Seu trabalho começou com o retorno da viagem do navio Beagle, em 1836, trazendo fósseis e espécimes do mundo todo, inclusive do Brasil.

A ideia de evolução em si não era nova. Em 1809, ano de nascimento de Darwin, o naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck propôs a evolução por meio de características adquiridas por esforço - um princípio errado, que marginalizou a ideia, já então tida por heresia. Darwin só decidiu tirar da gaveta A Origem das Espécies porque um pupilo seu, Alfred Russel Wallace, apresentou a ele uma teoria quase idêntica, em 1858. Wallace poderia também ter sido o pai da seleção natural, mas quem apresentou a tese fez toda a diferença. As credenciais de Darwin estavam acima de qualquer suspeita. Wallace era um jovem desconhecido, com fama de radical.

As décadas de preparação fizeram de A Origem das Espécies um trabalho impecável, prova e explicação definitiva para a evolução. Para surpresa de Darwin, o livro tornou-se um best-seller, transformando o cientista recluso em celebridade internacional, discutido, caluniado e caricaturado nos jornais. Sem gosto pela vida pública, coube a outros cientistas, como seu amigo Thomas Huxley, defendê-lo. Quando morreu, em 1882, era um tesouro do Império Britânico. O naturalista agnóstico ganhou a honra de ser enterrado na Abadia de Westminster, junto a outros grandes cientistas da nação, como Isaac Newton. O darwinismo tornou-se a doutrina capaz de explicar e dar novos rumos à biologia, fazendo a ciência - sem trocadilho - evoluir ao longo do século 20. Suas teses são contestadas apenas por um grupo: o dos cristãos fundamentalistas, os chamados criacionistas.

O mundo sem ele


Inúmeros avanços não teriam acontecido. Viveríamos num mundo de máquinas impressionantes, mas de ciência biológica primitiva, onde a maioria das crianças morreria na infância como no século 19. Mesmo que a teoria dos germes fosse desenvolvida, é preciso da seleção natural para entender a resistência aos antibióticos. Ecologia seria apenas romantismo, preservação de paisagens. Por mais que igrejas tradicionais, como a Católica, tenham buscado conciliar o darwinismo às suas crenças, ao explicar a origem da humanidade sem a necessidade de Deus, a seleção natural fez com que elas perdessem muito de sua influência. Darwin também ajudou a impulsionar a genética, e a descoberta do DNA, no século 20, tem a ver com seus escritos. "Sem Darwin, o mundo demoraria a explicar o mundo sem recorrer às forças sobrenaturais", afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp.


CURRÍCULO

Nome: Adolf Hitler

Nascimento: 20 de abril de 1889, Braunau am Inn, Império Austro-Húngaro

Morte: 30 de abril de 1945, Berlim, Alemanha

Ocupação: Pintor, cabo do exército, político, ditador

Adolf Hitler

A personalização do mal levou a barbárie à civilização


É difícil falar do nazismo sem recorrer a expressões moralistas como "O Mal". O professor Francisco Alambert, da USP, o define como "a mais perfeita tradução do horror moderno". Com Mao e Stalin, Hitler é um dos personagens cujo perfil torna obrigatório incluir uma contagem de cadáveres - 11 milhões, entre judeus, poloneses, comunistas, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e opositores, em execuções, massacres e campos de extermínio. Isso sem contar os 50 milhões da Segunda Guerra, que podem ser atribuídos a ele.

A diferença é que China e União Soviética nunca tiveram algo parecido aos campos de extermínio nazistas. Hitler foi inédito em seu ódio. Em meio a uma guerra que estava perdendo, desviou preciosos recursos para uma imensa operação industrial com o objetivo de eliminar pessoas de forma rápida e eficiente. O nazismo ainda recriou a escravidão em pleno século 20, com 20% da mão de obra alemã provindo de trabalho forçado.

Em 1919, recebeu do exército a missão de investigar o Partido dos Trabalhadores Alemães, fundado por Anton Drexler. Ao participar de uma reunião, surpreendeu os membros do partido com seu lendário talento para oratória. Saiu do exército e juntou-se ao grupo, que mudou o nome para Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (ou Nazi) em 1921. Dois anos depois, Hitler e outros líderes acabaram presos após o fracasso de uma tentativa de golpe de Estado em Munique. Na cadeia escreveu Mein Kampf, autobiografia e programa ideológico que impulsionou sua meteórica carreira política. Em 30 de janeiro de 1933, tornou-se chanceler (primeiro-ministro) da Alemanha.

O führer rearmou o país, recuperou a economia e fez inúmeras obras públicas. Foi eleito "homem do ano" de 1938 pela revista norte-americana Time. Em setembro do ano seguinte, ordenou a invasão da Polônia, sabendo que isso significava ter França e o Reino Unido como inimigos. A máquina de guerra nazista começou a patinar entre 1942 e 1943, quando foi derrotada no Egito e Stalingrado, na URSS. A partir daí, a guerra se tornou defensiva e cada vez mais desesperada - como o avanço das tropas soviéticas dentro da Alemanha, até a derrota em 1945. Hitler uniu comunistas, liberais e conservadores contra seu projeto nacionalista e seu fracasso tornou patéticas práticas que eram aceitas nos anos 30, como a eugenia e o racismo.

"Hitler não apenas ajudou a criar o horror que foram a Segunda Guerra e o Holocausto, nos quais dezenas de milhões morreram. Ele alterou a paisagem política global para sempre", afirma o jornalista e autor norte-americano Jon Lee Anderson. A divisão do mundo na Guerra Fria e a chamada Cortina de Ferro surgiram dos acordos feitos entre os soviéticos e os aliados ocidentais Mas o horror também contribuiu para a criação da União Europeia e para o maior período de paz da história da Europa, que a propósito dura até hoje. Por fim, como suprema ironia histórica, o homem que pretendia acabar com todos os judeus contribuiu para que o Estado de Israel nascesse mais depressa como solução para a crise humanitária pós-Segunda Guerra. Foi sua maior humilhação.

O mundo sem ele

É provável que a maior contribuição de Adolf Hitler para a História tenha sido desacreditar suas próprias ideias. O nacionalismo se tornou anátema na Europa e hoje qualquer discurso nacionalista embute um gene nazista. Racismo e eugenia são práticas totalmente desacreditadas hoje. A cooperação entre os países aumentou de modo a evitar novas guerras, e seu maior resultado foi a criação da Organização das Nações Unidas. Por causa do esforço de guerra, os alemães contribuíram para a conquista do espaço. Os foguetes V2, desenvolvidos pelo alemão Werner von Braun, foram o primeiro passo para os programas espaciais dos EUA e da União Soviética. Há até uma estranha contribuição para a saúde. Os médicos nazistas foram os primeiros a pesquisar a relação entre o cigarro e o câncer. Para o professor da USP Francisco Alambert, se Hitler não tivesse existido, "o século 20 seria menos bárbaro e o fascismo cotidiano perderia grande parte de seu espetáculo".


CURRÍCULO

Nome: Albert Einstein

Nascimento: 14 de março de 1879, Ulm, Alemanha

Morte: 18 de abril de 1955, Princeton, Estados Unidos

Ocupação: Físico e pacifista

Albert Einstein

O pacifista que mudou a física e deu origem às armas nucleares

A física se divide em antes e depois de 1905. Entre março e setembro daquele ano, quatro artigos foram publicados no periódico científico Annalen der Physik, de Berlim. Um demonstrava a dualidade entre partícula e onda, provando que a física quântica descrevia fenômenos reais, não efeitos de laboratório - o que nem Max Planck, considerado o pai dessa ciência, acreditava. Outro mostrava que átomos também eram reais, e não abstrações úteis para explicar fenômenos misteriosos. O terceiro estabeleceu que a velocidade da luz é constante, independentemente da velocidade de quem a emite - o que acontece é que o tempo fica mais lento para quem se aproxima dessa velocidade. Essa é a teoria da relatividade especial, que batia de frente com a física newtoniana - até então, e por mais de 200 anos, chamada simplesmente de física.

O último artigo estabelecia a equivalência entre matéria e energia, uma das equações mais famosas da história da ciência, E=mc2, o que afetaria o mundo de forma bem direta, pois é simplesmente a origem da bomba atômica.

Einstein tinha apenas 26 anos e nunca havia dado aulas. Seu trabalho era avaliar patentes num escritório em Berna, na Suíça. Os quatro artigos do annus mirabilis foram produzidos fora do horário de expediente, longe de laboratórios, de colegas com quem discutir e até mesmo de uma biblioteca adequada. Para muitos historiadores da ciência, foi o mais brilhante trabalho amador da História. Rapidamente Einstein foi reconhecido por seus pares e ganhou o primeiro cargo de professor na Universidade de Berna, em 1908, mudando-se para sua Alemanha natal em 1914. Mas houve enorme resistência dos defensores da física clássica. Tanto que, em 1921, quando recebeu o Prêmio Nobel, foi por sua explicação do efeito fotoelétrico - a parte que prova a física quântica - e não pela relatividade, que ainda irritava muitos cientistas com essa história de ter que deixar para trás séculos de física newtoniana.

Einstein tornou-se rapidamente uma celebridade internacional, a encarnação viva do supergênio. A sua foto com o cabelo desgrenhado e a língua de fora tornou-se um ícone pop que rivaliza com a imagem de guerrilheiro de Che Guevara. Suas opiniões sobre qualquer tema apareciam nos jornais, como sua defesa da democracia, socialismo e pacifismo. Foi nessa condição que veio ao Brasil, em 1925, observar um cometa que justificaria sua teoria de gravitação.

Ele se tornou "um pacifista fundamental, hostil ao militarismo de sua era e um ícone do sentimento antiguerra que dura ainda hoje", como afirma o historiador britânico Richard Overy. Mas esse pacifismo tomou partido em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha. Adotando os EUA como nova nação, Einstein se tornou partidário da guerra contra os nazistas. Em 1939, enviou uma carta ao presidente Franklin Roosevelt, alertando sobre a possibilidade do desenvolvimento de uma bomba atômica alemã. O gesto deu origem ao Projeto Manhattan e daí às bombas de Hiroshima e Nagasaki. Em 1954, ele diria ao amigo Linus Pauling que a carta a Roosevelt foi o maior erro de sua vida.

O mundo sem ele

Em 1905 e depois, Einstein respondeu a desafios da física que não foram levantados por ele próprio. Talvez outros físicos tivessem, anos ou décadas depois, chegado às mesmas conclusões. Mas o fato de Einstein ser judeu evitou uma possível tragédia. Os nazistas batizaram a física quântica e a relatividade de "física judaica" - além de Einstein, o dinamarquês Niels Bohr, outro pioneiro do universo quântico, também era judeu. No lugar da física moderna, propuseram o ensino da "física alemã", a mesma de Isaac Newton. Por isso, e pela fuga de cérebros causada pela perseguição, o programa nuclear nazista foi um fracasso - se alguém de olhos azuis fosse o autor de E=mc2, a história poderia ser diferente, e pior. As bombas atômicas também impediram a Terceira Guerra Mundial. Estados Unidos e União Soviética mantiveram uma paz tensa por medo da aniquilação mútua.


CURRÍCULO

Nome: Vladimir Ilyich Uliánov

Nascimento: 22 de abril de 1870, Simbirsk, Rússia

Morte: 21 de janeiro de 1924, Gorki, Rússia

Ocupação: Advogado, jornalista, escritor e revolucionário profissional

Vladimir Lenin

O fundador do primeiro Estado socialista levou a teoria à prática


Se Karl Marx deu as bases teóricas para a revolução socialista, até 1917 faltava alguém mostrar como fazê-la na prática. Havia muitos partidos que seguiam as ideias do filósofo alemão. Mas, em geral, eles concordavam com o que Marx havia dito sobre a evolução das sociedades: uma revolução proletária só poderia acontecer em um país com capitalismo avançado e um proletariado com consciência de classe, que faria a revolução sozinho. O advogado Vladimir Ilyich Uliánov deixou tudo isso de lado. Diferentemente de Marx, que não deu atenção aos países atrasados, Lenin era um grande crítico do imperialismo, que considerava a fase final do capitalismo. Ele acreditava que a revolução poderia ser feita, sim, em um país semifeudal como a Rússia, que recém havia abolido a servidão e tinha um proletariado minúsculo. Ele também imaginava que nenhuma revolução surgiria espontaneamente, mas que os trabalhadores precisariam de um partido de vanguarda, um bloco homogêneo e inflexível formado por revolucionários em tempo integral. Em 1897, Lenin foi preso e exilado para a Sibéria, por onde passa o Rio Lena - de onde vem o pseudônimo famoso. Em 1903, conseguiu formar seu grupo, a partir de um racha no Partido Operário Social-Democrático Russo. Os que apoiaram Lenin foram chamados de bolcheviques, a maioria. Os moderados, liderados por seu ex-colega Julius Martov, de mencheviques, minoria.

A primeira tentativa de revolução bolchevique foi em 1905, durante uma onda de greves, protestos e motins que tomou a Rússia após a derrota para o Japão na Guerra Russo-Japonesa. A revolução fracassou e Lenin foi para o exílio. Durante a Primeira Guerra, comprou briga com os socialistas do mundo inteiro, que apoiaram seus países no conflito. Lenin chamou a todos de traidores do proletariado, por defenderem uma guerra entre imperialistas. Mas foi o conflito que deu a ele sua grande oportunidade. Com as privações causadas pela guerra, em fevereiro de 1917 estourou outra revolução na Rússia. O czar abdicou e um governo provisório foi formado por uma coalizão entre liberais e socialistas. Conselhos (soviets, em russo) de trabalhadores e camponeses foram criados para defender a revolução. Disfarçado com uma peruca e de barba cortada, Lenin voltou à Rússia em agosto e conseguiu convencer os sovietes a se voltarem contra o governo provisório. Em 7 de novembro de 1917, a guarda vermelha de Lenin depôs o governo e deu início a uma guerra civil que duraria até 1923 e na qual padeceram, entre balas, fome e repressão brutal, 9 milhões de russos. Dessa forma traumática, nasceu a primeira nação marxista, oficializada em 1922. Em maio do mesmo ano, Lenin teve um derrame. Afastado do poder, passou seus últimos dias conspirando com Trotsky, sem sucesso, para evitar que Stalin fosse seu sucessor.

O mundo sem ele

É possível que os marxistas estivessem até hoje esperando as condições materiais estarem maduras o suficiente para a revolução socialista se Vladimir Lenin não tivesse tomado o trem rumo à estação Finlândia, em São Petersburgo. É difícil imaginar a história do século 20 sem a União Soviética ou qualquer outro país comunista. E a maneira de organização dos comunistas é obra de Lenin e de seu modelo de partido revolucionário, baseado no que chamava de "centralismo democrático", capaz de "liderar as massas contra a burguesia". O medo do comunismo fez com que quase todos os países democráticos, inclusive os Estados Unidos, aprovassem programas sociais e legislação trabalhista. Sem a insegurança gerada pelo risco do comunismo, a questão social ainda poderia continuar sendo tratada como caso de polícia. A causa anti-imperialista também teve em Lenin um de seus mais potentes defensores, e é possível que África e Ásia ainda tivessem colônias europeias sem sua inspiração nas lutas anticoloniais do século 20 - o socialismo foi o norte dos grupos envolvidos em processos de independência. A luta contra o comunismo tem seu lado sombrio em fatos como as ditaduras no Brasil e em outros países da América Latina, que colocaram os militares no poder por temor de governos esquerdistas. Para o professor Pedro Paulo Funari, "sem Lenin, talvez a Rússia ainda fosse uma monarquia atrasada até hoje".


CURRÍCULO

Nome: Iosif Djugashvili

Nascimento: 18 de dezembro de 1878, Gori, Geórgia

Morte: 5 de março de 1953, Moscou, Rússia

Ocupação: Revolucionário profissional, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética

Josef Satalin

O tirano que industrializou um país feudal e derrotou Adolf Hitler

A carta-testamento de Lenin, escrita no início de 1923, tem a seguinte passagem: "O camarada Stalin, tendo se tornado secretário-geral, tem autoridade ilimitada concentrada em suas mãos, e não tenho certeza de que sempre irá utilizá-la com suficiente prudência". Se a carta não tivesse aparecido só depois da morte de Lenin e prontamente suprimida, as vidas de 4 milhões a 60 milhões de pessoas, dependendo de qual historiador consultado, talvez tivessem sido poupadas. É possível gastar milhares de páginas tratando das atrocidades de Stalin. Mas, em uma frase, ele mudou a história.

Quando se juntou aos bolcheviques em 1903, Iosif Djugashvili era conhecido por ser um revolucionário de ação. O assalto a banco que comandou em Tiflis, na Geórgia, em 1907, por exemplo, causou 40 mortes - Stalin ("feito de ferro") era o codinome que usava em ações assim. A partir de 1917, começou a ganhar posições dentro do partido comunista, até tornar-se secretário-geral do PC da União Soviética, em 1922. Enquanto Lenin acreditava que a URSS só sobreviveria se conseguisse exportar a revolução, Stalin lançou a doutrina do "socialismo em um só país". Dizia que era possível a União Soviética sobreviver sozinha. E acabaria por provar isso - mas, antes, precisou transformar a Rússia de um país agrícola retrógrado em uma potência industrial.

Stalin era sincero em sua crença no socialismo. Para acalmar os ânimos da população, Lenin havia admitido um pouco de capitalismo na União Soviética ao formular a Nova Política Econômica, de 1921, que permitia pequenos negócios e propriedades rurais. Após eliminar qualquer oposição a seu poder absoluto, em 1928 Stalin lançou seu primeiro Plano Quinquenal, estatizou a agricultura e deu início a uma gigantesca campanha de industrialização, tentando superar o que ele chamava de "50 a 100 anos de atraso" da Rússia. A coletivização da agricultura causou revoltas, repressão brutal aos pequenos proprietários e uma fome que matou milhões de soviéticos, especialmente na Ucrânia. Mas sua campanha industrial fez a economia russa crescer incríveis 2 425% entre 1928 e 1937, uma década que no resto do mundo foi abalada pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York.

Em 1939, União Soviética e Alemanha assinaram o Pacto Molotov-Ribbentrop, um acordo secreto de não agressão. Em junho de 1941, Hitler rasgou o tratado e invadiu a União Soviética, pegando Stalin de surpresa. No fim do ano, as forças nazistas estavam a apenas 32 km de Moscou. Stalin permaneceu no Kremlin e liderou pessoalmente a resistência. Foi salvo por um gigantesco deslocamento de tropas que socorreram a cidade vindas dos confins da Sibéria. A resistência em Moscou e em outras cidades soviéticas, como Stalingrado, inverteria a situação nos dois anos seguintes. Em 1945, as tropas soviéticas marchavam sobre Berlim. O avanço militar das forças de Stalin foi seguido pela divisão política da Europa - todo o leste, com exceção da Grécia, ficou sob a órbita soviética até o fim da URSS, em 1991. Na conta de Stalin pode-se pendurar o atraso colossal da biologia e das artes durante seu longo governo, destruídas por seus zelosos comissários. Mas ao virar o rumo da guerra quase sozinho ele salvou o mundo do nazismo.

O mundo sem ele

A União Soviética seria com certeza um lugar mais agradável de viver. E isso duraria até ser conquistada pela Alemanha nazista, que considerava os eslavos um povo inferior, naturalmente vocacionados à escravidão. O algoz também poderia ter sido o Japão imperial, que tinha planos para atacar o país, mas desistiu quando o ensaio da invasão, uma batalha na Mongólia, em 1939, falhou miseravelmente diante dos tanques e aviões russos, fruto da indústria pesada que acabara de ser criada por Stalin. Ou ainda pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra, se o ditador não tivesse conseguido a bomba atômica com a ajuda de seus espiões. A força da União Soviética na Segunda Guerra não pode ser subestimada. Sem Stalin, o nazismo teria dominado tudo, da Sibéria até a França, e daí, quem sabe, o resto do mundo. Como afirma Pedro Paulo Funari, "a URSS não teria sobrevivido por tantas décadas nem teria havido Guerra Fria".


CURRÍCULO

Nome: Mao Tsé-tung

Nascimento: 26 de dezembro de 1893, Shaoshan, China

Morte: 9 de setembro de 1976, Pequim, China

Ocupação: Militar, revolucionário, escritor, presidente do Partido Comunista da China

Mao Tsé-Tung


Um pequeno homem comanda o despertar do gigante chinês

A China moderna, único país candidato a ameaçar a hegemonia econômica norte-americana, nasceu das ações de Mao Tsé-tung. Ele tirou o país do "século de humilhação", que vinha desde a derrota para o Reino Unido na Primeira Guerra do Ópio, em 1842. Durante esse período, a China - que por boa parte da história foi a sociedade mais organizada e tecnologicamente avançada do planeta - acabou dominada por potências estrangeiras e ficou sem Estado, fragmentada entre senhores da guerra. Ao se divorciar da União Soviética, nos anos 60, Mao partiu o comunismo em dois. Mas isso deu um novo fôlego a muitos comunistas pelo mundo, pois a União Soviética era associada aos crimes de Stalin e a uma burocracia envelhecida, corrupta e sem fervor revolucionário. O engajamento da juventude contra as gerações anteriores foi inspiração até para as passeatas de Maio de 1968 na França. A guerrilha de esquerda, a estratégia maoísta na Guerra Civil Chinesa, fez história na América Latina. Ao aceitar a visita do presidente norte-americano Richard Nixon, em 1972, o ápice da "diplomacia do ping-pong", Mao finalmente abriu o país ao exterior e deu o primeiro passo para transformá-lo no que é hoje.

Mao, "para o bem ou para o mal, unificou a nação ancestral da China, pavimentando o caminho para a eventual emergência do país de séculos de isolamento", como afirma o jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson. O "para o mal" não pode ser subestimado. Entre 30 milhões e 70 milhões de mortes são atribuídas à repressão e às experiências sociais de Mao, o que, em números absolutos, configura a pior matança da história.

Filho de fazendeiro, Mao foi um dos membros fundadores do Partido Comunista Chinês, em 1921. O partido logo se aliou aos nacionalistas, o Kuomintang, em campanha para reunificar o país. Em 1927, os nacionalistas traíram a aliança e massacraram 400 comunistas em Xangai, iniciando uma guerra civil que terminou com a fuga do Kuomintang para a ilha de Taiwan, em 1949, e a ascensão dos comunistas ao poder, onde, diga-se, se mantêm até hoje.Em 1958, Mao deu início ao "Grande Salto para a Frente", uma tentativa de desenvolver a China sem auxílio soviético. A fome, causada pela coletivização e o desvio de mão de obra para a indústria, estima-se, matou entre 20 milhões e 40 milhões de pessoas no país.

Com sua posição enfraquecida no Partido Comunista, em 1966, Mao decidiu voltar a população contra os dirigentes. A sua chamada Revolução Cultural instigou os jovens contra a burocracia do partido e tudo o mais que parecesse velho, tradicional ou ocidental. Com estudantes secundaristas atacando templos, livros e pessoas, principalmente professores e intelectuais, a China mergulhou no caos. A morte do Grande Timoneiro, em 1976, levou a um período de luta interna, que terminou em 1978, com a vitória do reformista Deng Xiaoping, que abriu o país ao capitalismo. Deng, para quem "enriquecer é glorioso", disse que Mao estava "70% certo, 30% errado". A China hoje é um híbrido de comando político comunista e economia capitalista.

O mundo sem ele

Se a China fosse liberada pelos nacionalistas, talvez tivesse um destino parecido ao de Taiwan, um dos Tigres Asiáticos - países da região que se desenvolveram rapidamente no final do século passado. Mas dadas suas proporções e desafios colossais - antes de Mao Tsé-tung, o país era uma caricatura de nação que mal conseguia alimentar sua população - não há garantias. Outra questão é se a China fundada no nacionalismo militarista de Chiang Kai-shek, cheia de ressentimentos contra a União Soviética, o Japão e o Ocidente, não seria uma ameaça à ordem mundial. A Coreia do Norte certamente não existiria, já a intervenção chinesa na Guerra da Coreia garantiu a continuidade do regime comunista. "Sem Mao não haveria a China que o capitalismo resolveu adorar", diz Francisco Alambert, da USP.
CURRÍCULO

Nome: Abraham Lincoln

Nascimento: 12 de fevereiro de 1809, Hardkin County, Estados Unidos

Morte: 15 de abril de 1865, Washington, Estados Unidos

Ocupação: Partidor de tábuas, advogado, congressista e presidente dos EUA
Abraham Lincoln

O presidente que libertou os escravos e salvou os EUA

Não é segredo que políticos fazem promessas que não pretendem cumprir. Ao menos uma vez na História, o mérito de um grande político esteve justamente em ignorar suas promessas. Em 1859, Abraham Lincoln falou a uma plateia em Cincinnati, Ohio: "Não tenho qualquer propósito de interferir diretamente ou indiretamente com a instituição da escravidão nos estados em que ela existe". Repetiu o mesmo discurso em outras ocasiões. Em sua carreira, havia feito de tudo para tornar mais difícil a escravidão, instituição que frequentemente comparava a um "câncer". Também dizia que a frase na Declaração de Independência dos Estados Unidos, "todos os homens são criados iguais", se aplicava aos negros, ideia chocante para muitos na época. Essa postura ambígua fez com que seu adversário na eleição para o Senado de 1858, Stephen Douglas, o chamasse de "duas caras". A réplica rendeu uma das boutades mais famosas de todos os tempos: "Se tivesse mesmo duas caras, por que o senhor acha que eu estaria usando esta?"

Contemporâneos notaram o quanto Lincoln era feio e malvestido, como sua voz era esganiçada. Mas o esquisitão era de fato a encarnação do sonho americano. Nascido numa família de agricultores analfabetos, tornou-se advogado estudando por conta própria sem ter concluído o ensino fundamental. Foi eleito deputado em 1846. Os debates durante a campanha ao Senado tornaram Lincoln conhecido no país inteiro. Em 6 de novembro de 1860, elegeu-se presidente, sem receber um único voto de delegados do sul do país. A Carolina do Sul declarou secessão em 24 de dezembro, antes mesmo de ele assumir a cadeira, em março do ano seguinte - quando mais seis outros estados escravistas diziam ser parte de outro país, os Estados Confederados da América.

Em 12 de abril, um ataque confederado a um forte na Carolina do Sul deu início à Guerra Civil Americana, primeiro conflito industrial da História, que causaria 750 mil mortes de combatentes - quase o dobro do que o país perderia na Segunda Guerra. Lincoln aproveitou as condições extremas para quebrar sua promessa e levar adiante a abolição, primeiro nos estados reconquistados, em 1863. E no resto do país em 1865. Sua terra natal, o Kentucky, era um dos estados que lutaram pela União e que ainda tinha escravos. A vitória das tropas da União tiveram reflexo até mesmo na História do Brasil. Um grupo de confederados buscou asilo no país, com as bênçãos do imperador dom Pedro II. Instalaram-se em São Paulo, onde tempos depois fundaram a cidade de Americana.

Um dos planos de Lincoln era instituir um amplo programa para integrar a população negra. Não viveu para isso. Em 14 de abril de 1865, cinco dias após a rendição dos confederados, o fanático pró-escravidão John Wilkes Booth disparou contra ele no Teatro Ford, em Washington. Lincoln morreu no dia seguinte, como o maior presidente da História dos Estados Unidos. Segundo Francisco Alambert, da USP, "o exemplo perfeito do `bom homem norte-americano¿; e do `bom homem norte-americano¿ saiu muito do melhor e muito do pior do mundo moderno". Exemplo que abriu caminho para a luta dos negros, de Martin Luther King a Nelson Mandela.

O mundo sem ele

O fato de os Estados Unidos se dizerem a terra da liberdade enquanto tinham escravos era uma hipocrisia que não passava despercebida por outros países. O fim da escravidão e a guerra civil marcaram a refundação do país, que deu início a uma segunda luta, a dos direitos dos negros, com as últimas leis racistas nos Estados do sul abolidas em 1965, após uma longa campanha pelos direitos civis. A luta dos negros americanos inspirou e deu ideias a movimentos similares no mundo todo, inclusive no Brasil. Sem Lincoln, é possível que a escravidão continuasse até o século 20 tanto lá quanto aqui - e a situação dos negros certamente seria pior. Os Estados Unidos provavelmente seriam um país mais atrasado, agrícola e isolado, não a potência industrial que interveio no mundo em momentos críticos, como na Segunda Guerra. Isso se continuasse unido depois da Guerra Civil. "Sem Lincoln, talvez não houvesse um país unificado",

Astros inventores: o mérito intelectual pouco reconhecido de gente do cinema


Estrelas como Hedy Lamarr e Marlon Brando fizeram importantes contribuições nos ramos da Medicina, Aeronáutica e Comunicações


21/05/2015  h13;20

Quando um nome do show business busca uma nova atividade que não seja brilhar em frente às câmeras é porque sua carreira declinou ou ele se cansou da fama. Assim fizeram Natalie Portman, estrela de Cisne Negro (2010), que decidiu estudar evolução da mente em Harvard, e o ator Sam Neill, de O Piano (1993), que obtém renda extra com a produção de uvas da Borgonha que ele introduziu na Nova Zelândia. Mas, tempos atrás, dividir a atenção entre filmes e projetos paralelos significava desafiar os regimentos de Hollywood. Hedy Lamarr, que protagonizou Sansão e Dalila (1949), por exemplo, se arriscou em querer que os EUA vencessem a Segunda Guerra. “Ela usou seu prestígio para promover um sistema de comunicação que inventou para as Forças Armadas”, revelou, em entrevista à AVENTURAS NA HISTÓRIA, Anthony John Loder, filho da atriz.
Quando se aposentou, Marlon Brando, de O Poderoso Chefão (1972), se rendeu às aulas de música e à fabricação de instrumentos tribais. Por sorte, Lamarr e Brando tinham noção de propriedade intelectual e patentearam seus feitos. “Uma imagem vale mais que mil palavras, mas um protótipo vale milhões!”, palavras do inventor Trevor Baylis no livro 1001 Invenções que Mudaram o Mundo. Alguns ficaram famosos também pelas invenções. Outros, nem tanto.
Paul Winchell – Coração artificial (1963)
Durante uma festa, o dublador de Dick Vigarista, vilão da série animada Corrida Maluca (1968-1986), conheceu o cirurgião Henry Heimlich, de quem era fã, e sugeriu a ele a invenção de um coração mecânico para bombear sangue durante operações cardíacas tensas. Sob orientação do médico, Winchell bolou o protótipo, que depois de pronto e patenteado foi doado para a Universidade de Utah. Segundo o próprio astro, “as válvulas e câmaras não eram muito diferentes dos olhos móveis e da boca de uma marionete”.
Marlon Brando – Ajuste de tambor (2004)
Quando jovem, o galã de Um Bonde Chamado Desejo (1951) apoiou diversos movimentos em defesa dos indígenas norte-americanos, com os quais teve aulas de produção e batuque de bongôs. Mas, como a carreira de ator tomava muito o seu tempo, deixou de lado o passatempo e só foi retomá-lo nos anos 2000, quando se redescobriu como designer de tambores. Ele criou um tipo de haste automática (nunca fabricada) para ajustar, conforme a força das batidas, a membrana elástica que reveste o instrumento.
Florence Lawrence – Seta sinalizadora (1914)
Atuante em mais de 300 filmes até a metade do século 20, entre eles No Tempo do Onça (1934) e Aconteceu Numa Tarde Chuvosa (1936), a atriz canadense radicada nos EUA herdou da mãe inventora a curiosidade por automobilismo e um grande talento para desenvolver peças de carros. Na década de 1910, ela criou um “braço sinalizador automático”, hoje conhecido por seta sinalizadora, e o sistema precursor das atuais luzes de freio.
Steven Spielberg – Game de guerra (1999)
Se nas telonas ele dirige atores em O Parque dos Dinossauros (1993), nas telinhas de videogames Steven Spielberg conduz jogadores por ruínas e labirintos gráficos. É que, além de diretor de cinema, também é projetista de cenários e roteirista de jogos de aventura e ficção científica das marcas Sony e Nintendo. Em 1999, lançou o primeiro game de tiro em primeira pessoa passado na Segunda Guerra. O sucesso de Medal of Honor obrigou Spielberg a expandir a plataforma do PlayStation para Windows e Macintosh.
Hedy Lamarr – Sistema-base do GPS e Wi-fi (1942)
A diva da primeira cena de orgasmo do cinema, no filme Êxtase (1933), é também a inventora da tecnologia-base da telefonia móvel e do sistema de posicionamento global, GPS. Quando criou o “salto de frequência”, sistema baseado nas várias ondas de som emitidas pelas teclas do piano, Lamarr imaginou aplicá-lo nos aviões e navios de guerra dos Estados Unidos, para despistar radares nazistas. Caro demais, o sistema acabou engavetado e só foi redescoberto na virada do milênio.
Bill Nye – Válvulas do Boeing 747 (1969)
Quem melhor para apresentar uma série de TV sobre ciência, Eureka (1993-1998) que um cientista da Nasa e engenheiro aeroespacial? Sim, além de ator e anfitrião do Epcot, da Disneyworld, Bill Nye é pesquisador da União Astronômica Internacional, responsável pela reclassificação do planeta Plutão para planetoide, e mecânico da empresa de aviação Boeing, onde atuou na fabricação de válvulas de ajuste de pressão do modelo de grande porte 747.
Harry Houdini – Roupa de mergulho (1921)
Que Mister M que nada, o primeiro ilusionista a revelar nos palcos segredos e truques de mágicos famosos foi Houdini, na década de 1880. Ele também atuou como dublê e ator de filmes de suspense e ação, como O Mestre do Mistério (1919) e a Ilha do Terror (1920). É dele a patente da primeira roupa de lata e borracha usada por mergulhadores que se aventuram em resgates submarinos. Em 1995, um incêndio destruiu boa parte do acervo de protótipos do astro; só sobrou a armação metálica da roupa.
Zeppo Marx – Suporte da bomba atômica (1941)
O caçula dos irmãos Marx, comediantes de Os Quatro Batutas (1931), era também engenheiro mecânico e proprietário de uma fábrica de engrenagens e correias hidráulicas. Envolvido com a fabricação de bombardeiros da Segunda Guerra, partiu dele a ideia de acoplar no avião Enola Gay argolas de fixação e transporte da bomba atômica lançada em Hiroshima, no Japão. Em 1948 o ator anunciou o lançamento de motocicletas com motor cilindrado de alta eficiência e baixa potência.
Julie Newmar – Meia-calça (1970)
Por incrível que pareça a patente dessa peça sensual é da Mulher-Gato, quer dizer, de sua primeira intérprete, na série de TV Batman (1966-1968). Tudo começou quando a atriz, insatisfeita com seu figurino nada provocante, costurou meias de náilon pretas a uma calcinha da mesma cor e foi para o estúdio de gravação. Em poucas semanas, já se viam mulheres nas ruas com as práticas meias-calças “nudemar”, chamadas assim por delinearem a nudez de Newmar.
Walt Disney – Som Surround (1940)
O áudio limpo e distinto das salas de cinema é obra do pai do Mickey Mouse. Ele foi criado para acompanhar Fantasia (1940), projeto de desenho animado e música clássica que Disney produziu com o maestro Leopold Stokowski. Insatisfeito com a qualidade do som existente, o cineasta usou nove gravadores ópticos independentes, cada qual com seu próprio microfone, para gravar as partes da trilha sonora. Depois, reproduziu o som por alto-falantes instalados atrás e ao redor da sala
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário